
Por Malu Gaspar – O Globo
Em mais um reforço à campanha do presidente Jair Bolsonaro contra a vacinação infantil, o Ministério da Saúde divulgou em seu site, no início da semana, uma extensa nota técnica dedicada unicamente a fornecer argumentos jurídicos para sustentar que a vacinação de crianças não é obrigatória e que cabe aos governos estaduais atuar “na medida de suas competências”.
A nota assinada pela secretária extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, Rosana Melo, e pelo diretor de programa Danilo de Souza Vasconcelos, causou perplexidade e indignação na comunidade científica, que a considerou mais uma tentativa deliberada de desencorajar pais e mães a vacinarem seus filhos – e de tranquilizar apoiadores do presidente Jair Bolsonaro bolsonaristas que temem sanções, como o veto a matrículas escolares.
Um dos argumentos usados na nota é que a vacina contra a Covid não é obrigatória porque foi incluída no Plano Nacional de Operacionalização (PNO) da vacinação contra o coronavírus, e não no Programa Nacional de Imunizações (PNI), eixo central das campanhas no país.
O argumento é o mesmo utilizado pela Associação Médicos pela Vida, que defende remédios ineficazes contra a Covid-19, numa nota divulgada ao público em 12 de janeiro.
Por lei, todas as vacinas do PNI são obrigatórias, e os pais que não imunizarem seus filhos segundo a previsão do programa podem sofrer sanções, previstas inclusive no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Em decisão no último dia 19, um dia antes da assinatura da nota técnica, o ministro Ricardo Lewandowski determinou que os chefes dos Ministérios Públicos estaduais são obrigados a assegurar o cumprimento do direito de menores de 18 anos serem vacinados contra a Covid-19.
A decisão, tomada a pedido da Rede Sustentabilidade, reconheceu que o Ministério da Saúde fere o ECA ao reiterar a não obrigatoriedade da imunização infantil.
O plano de operacionalização foi criado para dar suporte técnico ao PNI, e portanto como parte do programa. Mas, na nota, Secovid faz um contorcionismo retórico para sustentar que não. Na nota, a secretaria sustenta que esse PNO não faz parte do programa de imunização, porque hoje ele está subordinado à secretaria.
O documento afirma que PNO é um programa distinto do PNI não se submete às mesmas obrigações legais. Esse entendimento é contestado por autoridades no tema como Carla Domingues, que foi coordenadora do PNI por nove anos, nos governos Dilma Rousseff e Michel Temer. Para ela, além de equivocada, a afirmação da secretaria é temerária.
“A nota gigantesca serve apenas para dizer no final: ‘pai, não leve seus filhos para vacinar porque não será obrigatório’”, resume Domingues, que é epidemiologista.
“O Ministério da Saúde tratou o assunto desde o começo como uma campanha de vacinação contra a Covid, como fazemos com a gripe”, explica ela, para quem a divisão entre PNI e PNO está fragmentando ações que deveriam funcionar de forma intersetorial.
“É descabido. A única coisa que tem um histórico de longevidade e êxito no ministério é o PNI. E eles estão conseguindo desestruturá-lo, lamentavelmente”.
O PNI está sem um coordenador titular desde junho de 2021, o que é visto como reflexo do esvaziamento de um setor essencial para a vacinação no país há décadas.
Para Lígia Kerr, que integra a Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19 (Ctai) representando a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o posicionamento da Secovid é mais um esforço do governo para descredibilizar o Programa Nacional de Imunizações.
“Essa nota é uma aberração. Quem deveria ser responsável pelo plano de operacionalização da vacinação é o PNI. É uma tentativa de esvaziar o programa, jogando a responsabilidade para a Secovid. Isso é uma distorção, nunca foi e não deveria ser assim. A vacinação é aprovada pela Anvisa e o governo, através do PNI, deveria implementá-la”, afirma Lígia Kerr.
“Essa divisão entre PNI e PNO é mais um dos sintomas da desorganização de um governo que não comprou a vacina em quantidade suficiente e em tempo, criou crises e continua não apoiando a imunização de crianças”.
Domingues alerta ainda que as constantes tentativas do Ministério da Saúde de alimentar dúvidas sobre a vacinação de crianças tem consequências práticas no cotidiano da população.
Ela lembra que esforços similares de desacreditar vacinas ocorreram na campanha de adultos e adolescentes, mas observa que a investida subiu o tom na imunização infantil.
Além de convocar uma inédita audiência pública com militantes antivacinas para discutir o tema, o ministro Marcelo Queiroga distorceu dados sobre efeitos adversos dos imunizantes em crianças. .
“É contraproducente e surreal. No momento que temos crianças morrendo, com sequelas como a Covid longa, o ministro (Queiroga) vai para a televisão e diz que houve 4 mil mortes pela vacina, o que não é verdade. Ao invés de orientar e estimular a população a se vacinar, mostrando a segurança das vacinas, ele é hoje o principal desinformador”, afirma ela.
“Se há pessoas hesitantes, isso tem uma grande participação do Ministério da Saúde. Já passamos do estágio do receio, estão criando pânico na população. Se o ministério colocou a vacinação como uma ação prioritária e de Estado por 50 anos, e passa a alimentar dúvidas sobre vacinas, dizer que elas farão mal, os pais vão acreditar nisso”, conclui.
Questionado sobre o motivo da elaboração da nota técnica, o Ministério da Saúde não retornou até o fechamento da reportagem.