Hipocrisia e intolerância

Mais que uma caixinha de surpresas, o futebol é um poço de hipocrisia. A relação que deveria ser profissional entre clube (empregador) e atleta (empregado) quase sempre descamba para o mais puro amadorismo. Sempre foi assim e nada garante que vá mudar pelos próximos 300 anos.

Nos grandes clubes, onde qualquer notícia adquire contornos espetaculares, privilégios concedidos aos astros sempre foram tolerados e assimilados por quase todos. No passado, a coisa era até pior: não existia uma imprensa tão crítica e bisbilhoteira e os jogadores não tinham a inserção social de que desfrutam atualmente.

O famigerado regime de concentração, que vem de sofrer candentes ataques por parte de Ronaldo Fenômeno, sempre foi driblado por jogadores famosos ou não ao longo dos tempos. Na Copa do Mundo de 1994, Romário obteve salvo-conduto da comissão técnica para escapadinhas em horários mais soturnos. Saía, encontrava-se com a namorada e voltava, na surdina e sem maiores traumas.

Os demais jogadores fingiam não ver o tratamento diferenciado, mas aceitava na boa porque o Baixinho em campo sempre resolvia, tanto que foi o principal artífice do título mundial conquistado em gramados ianques.

Na democracia corintiana, liderada por Sócrates e Wladimir, os jogadores praticamente aboliram a concentração de corte militarista. Apesar da liberdade – e da birita que rolava solta e generosa –, o time funcionava e ganhou muitos títulos.  A inspiração dos corintianos veio do exemplo da seleção holandesa de 1974 (sempre ela). Naquele ano, durante a Copa da Alemanha, Cruyff e seus companheiros ficaram hospedados com as esposas e namoradas, levando vida absolutamente normal em plena competição.

Não é que deu certo? A Laranja Mecânica foi vice-campeã e entrou para a história por introduzir o futebol-total, também apelidado de Carrossel Holandês. E um dos trunfos daquela equipe era justamente o impressionante condicionamento físico de seus jogadores.

No Brasil, a preocupação em preservar a imagem dos jogadores mais boêmios sempre foi maior do que o rigor na cobrança de atitudes profissionais. Edmundo – pretendido pelo Paissandu – chegava amanhecido ao Palmeiras, mas havia sempre alguém disponível para velar seu sono nos vestiários do Parque Antártica. Enquanto os demais jogadores suavam em bicas nos treinos matinais, o Animal se refazia da noite trepidante.

O mesmo ocorreu com Neto e Marcelinho Carioca no Corinthians. As desculpas eram sempre as mesmas. Atletas precisavam ser poupados dos treinos por causa de dores musculares ou indisposição intestinal. Apesar da fragilidade das explicações, as histórias eram aceitas por todos, inclusive pela imprensa da época, permissiva e subserviente. 

Acontece que os tempos mudaram. Bons exemplos dessa mudança no tratamento a ídolos que se comportam como baladeiros são as faltas de Adriano e Fred aos treinos de seus clubes, Flamengo e Fluminense, respectivamente. O Imperador faltou pela terceira vez a um treino na Gávea e o atacante tricolor também sumiu das Laranjeiras. Confusão nos clubes, repercussão na imprensa, reação furiosa de torcedores.

Os tempos são outros. A internet alterou o comportamento de todos, para o bem e para o mal. A torcida, antes complacente, exige mais, não aceita malandragens, rejeita a turma do chinelinho. Extremistas, alguns torcedores acham que jogadores devem se comportar como monges. Por justiça, a cobrança maior recai sobre os que ganham mais. Melhor assim.

E assim caminha a humanidade.

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