Sobre o dom de iludir

Certos comportamentos de jogadores dentro e fora de campo denunciam a fortíssima influência do marketing nos gestos aparentemente mais banais. Vai daí que o torcedor mais esclarecido já não se deixa levar pelos carrinhos em bolas esticadas rumo à lateral ou à linha de fundo. Há até bem pouco tempo isso era visto como demonstração de raça genuína, amor desmesurado pela camisa. Hoje, o torcedor (aquele mais esclarecido) sabe que o esforço inútil tem apenas o intuito de iludi-lo.
Outra praga do futebol contemporâneo, o beijo de judas no escudo do time pelo jogador recém-contratado, felizmente foi quase banida. A rejeição ao gesto é tão ampla, geral e irrestrita que mesmo os boleiros mais caras-de-pau já refugam na hora de aplicar o ósculo no símbolo dos clubes.
O mesmo vale para aquelas empoladas declarações de amor eterno, que muitos tinham o desplante de fazer apesar de todas as evidências sobre a fragilidade do elo que une profissionais e clubes de futebol.
Como a criatividade humana é máquina em constante movimento, eis que logo aparecem outras formas refinadas de hipocrisia explícita, capazes de demolir a resistência até dos mais cabreiros arquibaldos. É o caso das comemorações iradas de goleiros e zagueiros, principalmente, diante de uma defesa mais arrojada ou desarme junto à área.
Claro que o sujeito não fez mais do que cumprir suas obrigações de defensor, mas aproveita o embalo para faturar uns pontinhos junto ao torcedor mais cabeça-oca. Levanta os braços, cerra os punhos, trinca os dentes como Wolverine e bate no peito como o homem de Neardenthal, em performance teatral que normalmente arranca aplausos entusiasmados da massa ignara. Na TV, a encenação adquire contornos ainda mais dramáticos e o sujeito incorpora o deus da raça.
Alguns arqueiros são especialistas nesse truque barato: Bruno (Flamengo), Felipe (Corinthians), Fernando Henrique (Flu) e Fábio Costa (Santos). Por aqui, os goleiros Adriano e Rafael Córdova também são chegados a esse expediente, que macaqueia uma forte tradição do vôlei, com seus abraços e beijinhos sem fim a cada ponto conquistado.
Não há jogo sem que essa turma reaplique a estratégia. Zagueiros e volantes também são adeptos da malandragem. No S. Paulo, o mais contumaz é o ala Richarlyson. No Palmeiras, há o beque Marcão. No Flamengo, Fábio Luciano era o típico animador de auditório. Deu tão certo que ele virou uma espécie de Beckenbauer da Gávea, lembrado até para ser presidente do clube por alguns mais afoitos.
 
 
Engraçado é que nos campeonatos europeus dificilmente há lugar para esse tipo de presepada. Mesmo os brasileiros passados na casca do alho contêm o ímpeto na hora de extravasar seu carinho por um clube. Talvez por saberem que o torcedor do Velho Continente é bem mais crítico e resistente a esse tipo de manifestação espalhafatosa.   
Que fique claro: o gesto sincero e franco, de verdadeira simpatia ou afeto por um clube, ainda sobrevive. Sua espontaneidade é sempre visível e inquestionável. Infelizmente, é acontecimento cada vez mais raro.

(Coluna publicada na edição do Bola/DIÁRIO desta quarta-feira, 24)

Um comentário em “Sobre o dom de iludir

  1. Gerson, tudo isso vem da péssima base que alguns clubes possuem.Como lhe falei esses jogadores vem das peladas para as bases dos clubes e não são preparados para encarar uma vida profissional no futebol, porque não possuem profissionais capacitados para tal. Um psicólogo e um bom Técnico, resolveriam esse(s) problema(s).
    Cláudio Santos – Técnico do Columbia de Val de Cans.

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