Religião é tema sempre delicado e o bom senso recomenda que se respeite sempre a convicção de cada um, mas algumas entrevistas pós-jogo beiram o paroxismo catequético. Depois da categórica vitória sobre o S. Paulo, no Morumbi, na última quinta-feira, o goleiro cruzeirense Fábio abriu mão de comentar a parte técnica da partida e caprichou no tom de pregação. Bacana e inspirador, pelo aspecto da crença pessoal. Inadequado e forçado, do ponto de vista esportivo.
“Deus é fiel, toda glória a Ele. Temos que agradecer por ter iluminado o nosso time, nos presenteando com essa maravilhosa vitória”, começou, com o sorriso próprio dos beatos. “Glória a Deus pela classificação, é a Ele que devemos glorificar e blá-blá…”, prosseguiu nesse tom monocórdio até o repórter finalmente desistir da entrevista.
Tudo muito bem, a fé move montanhas e a glorificação do Altíssimo é sempre justa, mas não deixa de ter um quê de cruel maniqueísmo o conceito de que Deus só age em favor dos vencedores, pouco se lixando para a sorte dos derrotados.
Fiquei a imaginar, de imediato, a situação dos atletas de Cristo do S. Paulo ao ouvirem as palavras fervorosas de Fábio. Afinal, por que cargas d’água justamente no prélio do Morumbi o supremo regente do Universo decidiu interceder em prol dos cruzeirenses? Será que os são-paulinos rezaram menos ou não fizeram por merecer o triunfo?
Continuo a crer, piamente, que o Todo-Poderoso reserva seu tempo a missões mais importantes que uma partida de futebol. Levando em conta a quantidade de palavrões, ofensas e agressões físicas disparados ao longo dos 90 minutos, desconfio que seu interesse pela atividade boleira é quase zero. No alentado cardápio dos esportes deve preferir o golfe, os saltos ornamentais, a ginástica rítmica ou o sempre injustiçado badminton.
Entraram para a história – e o anedotário do futebol – as presepadas de Marcelinho Carioca, atleta de Cristo juramentado, envergando faixa na cabeça em louvor a Jesus quando defendia o Corinthians. Era a bola rolar e o crente se transmutava em capeta, baixando o sarrafo nos adversários, cuspindo e xingando deus e o mundo.
Seu único momento de contrição era antes das cobranças de falta. Sempre ajeitava a bola depois de um beijo santificado, seguido de um olhar rumo aos céus. Quando calhava de a bola entrar, derramava-se em tributos ao Senhor. Quando perdia, saía querendo briga ou pespegando desaforos contra a arbitragem.
Recentemente, houve outro exemplo ululante de falsa beatice. O árbitro Edilson Pereira de Carvalho não iniciava um jogo sem antes benzer-se todo, dos pés à cabeça, elevar a vista em busca de proteção divina e beijar uma santinha que trazia no bolso. A torcida nem desconfiava que aquela benzeção toda era só potoca.
Descobriu-se, tempos depois, que Carvalho era árbitro de esquema e aceitava suborno para arranjar resultados. Pensando bem, o ritual talvez tivesse um motivo: pedir a Deus para não ser pego em flagrante.
(Coluna publicada na edição do Bola/DIÁRIO deste domingo, 21)
Gerson: irretocável a sua abordagem acerca daqueles – competidores ou não – que crêem que Deus seja parcial, e que faça opções por bandeiras ou facções.