Acerto de contas com o passado

Por Guto Lobato, no Facebook

Lembro perfeitamente do dia da prisão do Lula. Meio mundo declarando os vícios do processo, gente na própria direita incrédula com a ordem de confinamento sem qualquer prova cabal dos crimes dos quais o ex-presidente era acusado.

Na Saúde, bairro de classe média de São Paulo, onde a gente morou por 12 anos, uma horda de gente batia panelas e ofendia Lula e sua família, dizia que a petistada ia toda morrer de fome. Como no impeachment da Dilma, outro momento sombrio que nossa geração teve de aturar, a gente estava em casa, numa fossa surreal, em um anoitecer nublado, feioso.

Mesmo sem nunca haver votado no Lula até ali (somente na Dilma), senti uma vontade insana de dar soco na parede ao ver aquele homem, que tinha tirado o Brasil do mapa da fome, que nada tinha de prova contra si, ser escorraçado para a cadeia e carregado com afeto por seus eleitores e militância, no ABC. Uma cena sem qualquer violência, com uma entrega voluntária que seguiria respeitosa em sua permanência no cárcere por mais de 500 dias. Na televisão, cobertura em tempo real das viaturas da PF entre o ABC e o aeroporto, direto para Curitiba. Comentaristas, quase todos conservadores, mal disfarçando a empolgação juvenil. Aquele PPT; ah, aquele PPT. Claramente tinha algo muito errado naquele circo. 

E tinha. O processo foi – descobriu-se via um belo trabalho investigativo e de denúncia do jornalismo, este mesmo que o bolsonarismo e seus defensores detestam – absolutamente viciado, contaminado e embebedado pela sanha da extrema-direita, na sua vontade infinita de eliminar o outro e reinar absoluta na teocracia da arminha que Bolsonaro tentaria implantar.

Não deu certo. Ele perdeu as eleições de 2022 após assassinar 700 mil brasileiros, botar pessoas pobres para comer sopa de osso e, com isso, fazer gente sensata da direita tapar os olhos e até apertar o 13 que sempre detestou. Perdeu, não aceitou, tentou dar um golpe, mas perdeu. Lula assumiu e voltamos a ter alguma paz.

Corta para 2025.

Estou eu aqui, ainda morando aqui no Brasil, ainda acreditando em tudo isso aqui. Um pouco mais velho, um pouco menos paciente com gente maluca, mas também menos brigão. Agora, com dois filhos que Mayara e eu decidimos colocar no mundo, acreditando (tendo esperança) que isso ainda é lugar justo e bom de se viver. Afinal, para que faríamos filhos, se achássemos que não tem salvação? Hoje, estamos sem Bolsonaro no governo; em troca, temos um Bolsonaro encurralado, de tornozeleira e prisão domiciliar, combalido e corroído por seu próprio ódio, réu junto com seus asseclas.

Assisti ontem e hoje ao julgamento do processo que, no Supremo Tribunal Federal, confirmou a existência de uma organização criminosa mobilizada, entre 2021 e 8/1/2023, para assassinar Lula, eleito, seu vice, Alckmin, e um ministro do STF, entre outras coisinhas mais – tipo dar um golpe de estado, abolir o TSE, invalidar as eleições etc. Coisa miúda. Essa organização faz parte do mesmo grupo que assassinou centenas de milhares na pandemia, que desdenhou do sofrimento alheio, que atrasou a compra de vacinas. Que matou de Covid-19 pais de amigos meus, queridos, que nunca fizeram mal a uma mosca. Mas que está sendo julgada por motivos mais mundanos, por ora – por ora! -, e que teve na Primeira Turma sua sentença confirmada por uma somatória de crimes.

Mal consigo expressar a chuva de coisas que passaram pela cabeça quando vi os ministros descreverem seu voto e suas ideias. Juro que só conseguia pensar no Vinicius e na Athena. Nunca na vida senti com tanta segurança que o que se faz aqui, se paga aqui. Mesmo na hora do voto de Fux, o homem que se contradiz sem que ninguém o peça, esse julgamento foi uma experiência prazerosa. Distensão, catarse, vontade de ver alguém que tanto mal fez (e que já está pagando em vida pelo que fez, diga-se de passagem – uma vida horrenda, em uma família horrenda) ser responsabilizado, considerado criminoso em uma votação colegiada.

Lembro, ainda hoje, dos depoimentos e dos passos jurídicos do Brasil surtado do lavajatismo. Via Lula ali, sabendo que seria preso hora ou outra, sempre calmo, sem gritaria, reiterando que era um processo (e não um julgamento) injusto. Saiu da cadeia respeitando a Suprema Corte – a mesma que por fim teve a responsabilidade de anular seus processos viciados. Agora, vê-se Bolsonaro, sem cargo e sem poder, desesperado, fazendo drama nas redes e na mídia, ressaltando seu apodrecimento físico e psíquico. Diz-se, condenado antes mesmo do julgamento – não porque os juízes necessariamente queriam, mas porque a montanha de provas berrava na cara de qualquer um. Um decadente, rumo à decadência.

Há dois anos, mais ou menos, não escrevia nada aqui. Sigo sem paciência, sem saco, mas hoje é um dia muito especial. Um dia em que a gente vê que vale a pena ficar nesse país, abraçar o lado correto da História (que, sim, existe) e ter paciência e serenidade. Justiça existe. Os autos da ação penal da trama golpista não são sobre isso, as penas idem – mas tudo faz remeter à confusão iniciada há exatos dez anos, quando Dilma começou a ser expulsa a conta-gotas do cargo para o qual foi eleita. Dali em diante, a esquerda (qualquer esquerda, qualquer coisa que não a mais burra direita) foi ridicularizada, tomada como bandida, pisoteada, substituída por cristãos adoradores de armas. 

Hoje a coisa é diferente. Nossos filhos dormem tranquilos, e a gente vai dormir mais tranquilo ainda. A gente vai comemorar. Afinal, depois de tudo que qualquer pessoa sensata viu de errado e teve que engolir nos últimos dez anos, podemos finalmente dizer que o jogo virou. Valeu a pena acreditar que nosso país é decente, que sabemos punir e reprimir quem atenta contra nossa estrutura institucional, que respeitamos eleições. Que temos um Judiciário capaz de entender o senso de urgência dessa ação.

Em resumo, valeu e vale a pena insistir, viver, fazer família e planejar um futuro aqui. Esse país finalmente começou, hoje, a acertar suas contas com um passado horroroso e expurgar seus demônios. Acordamos de um pesadelo. Que seja só o começo – sem anistia, sem perdão, sem dó ou piedade.

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Nota do blogueiro – Identifico-me com o amigo Guto Lobato quanto a ter perdido por um bom tempo o tesão pra ficar protestando e manifestando indignação com as perversidades extremistas da direita no Brasil. Mas, aos poucos, os fatos estão permitindo que a velha fúria por Justiça reapareça viva e confiante.

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