Democracia à beira do abismo (e o povo achando que é piscina)

Por Renato R. Valle

Bolsonaro pode até ter saído de cena, mas o bolsonarismo, esse monstrengo que ele batizou sem jamais ter mérito sequer para dar nome ao capiroto, continua vivo, treinando pesado e afiando as garras para 2026. O mito pode ter caído, mas o delírio coletivo que o sustentava ainda respira, pronto para reaparecer com outro rosto, outro discurso, mas o mesmo vírus.

E não nos enganemos: em 2026 trocaremos 2/3 do Senado, e acreditar que basta derrotar Tarcísio é de uma ingenuidade letal. O Executivo pode até ser a joia da coroa, mas sem um Congresso funcional governar vira uma experiência masoquista. O fascismo freestyle tropical não precisa de um presidente para prosperar; basta um Congresso tomado por soldadinhos do caos e pronto: Brasília vira quartel-general do autoritarismo.

Esse fanatismo de extrema-direita, lembremos, não é exclusividade nacional. É uma onda global que avança pelo Ocidente:

• Nos Estados Unidos, Donald Trump segue ditando as regras no Partido Republicano, e seu retorno ao poder mostrou o fôlego de um populismo rancoroso.

• Na Hungria, Viktor Orbán governa sob o rótulo de “democracia iliberal”, desmontando, passo a passo, qualquer freio institucional.

• Na Itália, Giorgia Meloni lidera o governo mais à direita desde Mussolini  (e isso não é metáfora literária).

• Na Polônia, o conservadorismo religioso e o ultranacionalismo continuam garantindo vitórias à direita radical.

• Na França, Marine Le Pen chegou perigosamente perto do Eliseu e segue crescendo.

• Na Alemanha, a AfD (Alternativa para a Alemanha) já ocupa espaço sólido no Parlamento, mesmo sendo herdeira ideológica dos piores espectros do século XX.

• Na Espanha, o Vox, com seu saudosismo franquista, influencia e corrói o jogo democrático.

• Na Áustria, partidos nacionalistas seguem respirando forte, com pautas xenófobas e antieuropeístas.

Ou seja: o fenômeno não é local, é mundial. E ignorá-lo é o mesmo que entregar a chave do templo ao incendiário.

E aqui, a história ensina: em 1964, foi o Congresso Nacional que abriu caminho para o golpe militar. Sob a alegação farsesca de que o presidente João Goulart havia abandonado o país, quando na verdade estava no Rio Grande do Sul tentando articular resistência, o Congresso declarou vaga a presidência da República em 2 de abril de 1964. Esse gesto, ilegal e imoral, rasgou a Constituição e pavimentou a ditadura. A lição é clara: basta um Congresso complacente para afundar uma democracia.

E não é preciso ir tão longe: basta um Congresso majoritariamente bolsonarista para anistiar Bolsonaro de todos os seus crimes. Ainda que o presidente da República vete, o veto pode ser derrubado por maioria simples. Ainda que uma ação direta de inconstitucionalidade seja ajuizada, o julgamento demoraria tempo suficiente para que o próximo presidente nomeie três ministros do STF: Rosa Weber (aposentada em 2023, já substituída por Flávio Dino), Ricardo Lewandowski (aposentado em 2023, substituído por Cristiano Zanin) e os próximos na fila, Cármen Lúcia (2029), Gilmar Mendes (2030) e outros ministros que atingirão a idade-limite. O tabuleiro da democracia pode ser redesenhado em silêncio, cadeira por cadeira.

Bolsonaro passou? Ótimo, soltem fogos.

Mas o perigo não era o personagem, era o vírus. Um vírus que, se não formos vigilantes, pode ocupar cada cadeira acolchoada deste Congresso e até saltar para o Executivo.

Por isso, ecoo as palavras do grande Ulysses Guimarães, conhecedor profundo do terreno:

“Está achando ruim esse Congresso? Então espere o próximo: será pior.”

Que este manifesto sirva como alerta: não é hora de relaxar, é hora de vigiar.

(E nem falei que esse tipo de preocupação nos tira o foco de problemas como a discussão ética sobre as redes e IA, questões ambientais e outras questões de primeira necessidade para uma coexistência pacífica e para que haja um futuro).

Deixe uma resposta