A verdade de Verissimo

Previsível e precioso como o pôr-do-sol, sua impossível obra refletiu quem somos – e quem sempre seremos

Por André Forastieri

Me ligam da redação sexta à tarde: Veríssimo pode morrer este fim de semana. Você escreve? Como dizer não? Sábado de manhã caí da cama com o texto pronto na cabeça. Escrevi voando e despachei pra editora, Ju Zorzato, com a seguinte recomendação: “Para só ser publicado caso ele morra. Espero que saia daqui uns dez anos.”

Uma semana depois, Veríssimo estava fora da UTI.

Porque isso aconteceu em dezembro de 2012, não agosto de 2025.

Resolvi não esperar pra fazer a homenagem; publicamos então e boa. Se fosse eu, preferia ler vivo meu próprio obituário.

Relendo o texto hoje chateia o quanto ficou de fora. Como fez seu um universo de referências gráficas da juventude, Jules Pfeiffer à frente; seu delicado existencialismo, sua gauchice, sua impossível versatilidade. O obra de Veríssimo rende um livro ou vários.

Felizmente desde então mais treze anos se passaram com Luiz Fernando por aqui. Tristemente perdermos Jaguar e Veríssimo de uma vez. Nosso Brasil que se vai, que bom que eles ficarão. E que orgulho algumas vezes ter feito companhia a ambos no expediente da revista “Caros Amigos”.

Abaixo, a homenagem de 2012 – e 2025.

A verdade de Veríssimo

Luiz Fernando Veríssimo escreveu demais. Estava por toda parte, nos cercava: em jornais, artigos em infinitas revistas, roteirizando tantos programas de televisão, desenhando cartuns e tiras, tradução disso e daquilo, toda hora um novo título nas livrarias.

Criado nos EUA e louco por jazz, escreveu como Fred Astaire dançou. Da maneira mais difícil: fazendo parecer fácil. Foi essa raridade no nosso país: um “working writer”, um cara que vive de escrever. Sua produção prodigiosa, sofisticada e acessível fez dele parte previsível da paisagem. Elemento do nosso dia-a-dia, como um pôr do sol, que, precioso, não nos encanta, por sua entediante regularidade.

Li Veríssimo a vida inteira, intermitentemente. Publicasse ele somente a cada dois anos um romance, talvez o valorizássemos mais. Teria na certa status literário diferente. Quem sabe se sentiria desafiado a mergulhar mais fundo?

Não. Sua matéria prima era o cotidiano, os momentinhos de que o caleidoscópio da vida é feito. Escrever um romance demanda arrogância. Ele os escreveu, como escreveu todo tipo de coisa. Mas só na última temporada, a maioria de encomenda, para coleções temáticas. Não era de sua natureza nem o melhor uso de seu talento, se dedicar a uma coisa só.

Era caminho já percorrido por outro Veríssimo. Seu pai Érico foi leitura obrigatório para a minha geração, tanto quanto um Jorge Amado ou Graciliano Ramos.

Contemporâneos dos nossos avós, nos transmitiam a imagem de um país rural, brutal, encantador, perdido. Érico de um sul épico, mítico, másculo. Imagine o peso de se tornar um escritor e assinar Veríssimo, sendo Luiz Fernando filho de quem foi. Pois Érico se tornou o pai do Veríssimo, que bate fácil o pai em popularidade e relevância.

Suas velharias mantêm o frescor do minuto. Tropecei esses dias em “Traçando Japão”, livrinho de vinte anos atrás, memórias turísticas. Delícia: perfumes do Oriente, anedotas memoráveis, alma aberta de viajante.

Incrivelmente, além do Veríssimo das vinhetas e dos causos, tivemos o privilégio de conviver com o Veríssimo cartunista. O Veríssimo das tiras, das Cobras e da Família Brasil. O Veríssimo da televisão, das Comédias da Vida Privada. O criador de personagens memoráveis, Ed Mort, Analista de Bagé, Velhinha de Taubaté.

Convivemos ainda com o personagem Veríssimo, que expunha suas fragilidades e dúvidas, sem grosseria nem exibicionismo. E aproveitamos muito o Veríssimo jornalista, observador agudo e cético mas sempre humanista, sempre transparente em suas posições.

No meio era conhecido pela generosidade. Principalmente com os colegas mais jovens, de jornalismo, literatura e cartum.

Um exemplo só: já muito famoso, escrevia de graça todo mês para a revista Caros Amigos, quando foi lançada, meio dos 90. Projeto independente, de esquerda, não tinha verba para os colaboradores.

Tenho o orgulho de ter meu nome ao lado do seu, no sumário da revista, naqueles primeiros anos. Me arrependo de nunca tê-lo procurado. Estava ao alcance de um telefonema. Ele era tímido, também fui.

A vida passou e perdi a chance. Mas o que diria a Luiz Fernando Veríssimo?

Que seu trabalho me fazia questionar como eu uso meu tempo por aqui? Que ele era uma referência única de escritor profissional no Brasil e um compasso ético pelo qual o melhor Brasil se guiou? Que era admirável como ele enfrentava as certezas de sua dúvida? Que pontuava melhor que ninguém?

Veríssimo não deixa obra-prima. Nos deu mais: sua verdade. Uma visão pungente, irônica, compromissada e muito pessoal de quem fomos e somos. E marca do gênio: de quem sempre seremos.

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