Ted Chiang e a história que precisamos contar

Existem dois tipos de narrativas. É crucial abandonar uma delas

Por André Forastieri

Ted Chiang despreza Inteligência Artificial. Pode isso, escritor de ficção científica implicar com IA? Pode – se antes de ser da sci-fi, o sujeito é das letras, como Ted. Ele se diz “working writer”, termo americaníssimo e adorável, pessoa que sobrevive do ofício de escrever. Melhor não traduzir para o tradicional “operário da escrita”, que sugere linha de montagem e limitado poder de barganha.

Ted está mais para “militante das letras”. Como muitos outros criadores, não engole que as big techs chupem obra alheia para treinar seus bilionários softwares. Mas somos todos como o Keanu plugado naquelas cubas melequentas, as máquinas sugando nossa atenção e energia e nós distraídos na Matrix, não?

Alguns de nós estão mais despertos que outros. Chiang não está incomodado só com o assalto aos royalties. Critica GPT e cia. como engenhocas tôscas e inúteis para propósitos mais, digamos, humanos. Por exemplo, contar histórias.

Ted não é ludita. Nem ídolo só da nerdorama. Lembremos Joyce Carol Oates incluindo ele entre seletíssima companhia, na resenha da coletânea Expiração:

“À maneira de predecessores ecléticos como Philip K. Dick, James Tiptree, Jr., Jorge Luis Borges, Ursula K. Le Guin, Margaret Atwood, Haruki Murakami, China Miéville e Kazuo Ishiguro, Chiang explora convenções da ficção científica de modo altamente não convencional”.

“O autor do conto que deu origem ao filme A Chegada”, como deve estar cansadíssimo de ser apresentado, deu palestra em São Paulo pra poucos. Ganhei convitinho porque quem tem amigo, tem tudo. Evento disputado e chiquetésimo, na Casa Manioca da Helena Rizzo, Ted deve ter babado com o ceviche de melão.

Quem trouxe foi a agência Pina e quem entrevistou o escritor no palquinho ali foi Jennifer Queen, sua fundadora e CEO. É fã dele, como foi seu pai; liam e comentavam em família os artigos de Ted pra New Yorker. Jennifer chavecou Ted anos pra convencê-lo a vir pro Brasil.

Satisfação pessoal e repercussão poderosa. Ted apareceu em todo lugar, da Veja ao Valor, passando por bom papo com o amigo Thiago Ney, na Folha e da indispensável newsletter Margem, leia aqui.

Bom negócio investir em inteligência, especialmente quando o lema da sua empresa é “Transforme seu negócio com história”. Contar histórias é a tecnologia mais importante: a que nos diferencia de todos os outros animais.

Jennifer e Ted

O boom da IA Generativa tem uns três anos e não dá sinais de desacelerar. Continuam os investimentos maciços. E os resultados, apareceram?

A conta burra é a seguinte: se 90% dessa grana der em pouco ou nada, os outros 10% já serão transformadores, porque é uma Olympus Mons de dinheiro.

Inevitavelmente vêm aí novas soluções. Novas soluções criam novos problemas. Estes frequentemente convivem pacificamente com problemas antigos, ancestrais. Ambiguidade, essa nossa amiga tão complicadinha.

Didático, Ted variou entre o realismo e o ranhetol. Materializou a bobice da IA em dois usos cotidianos e autocancelantes dela. Imagine que o sujeito no escritório escreve um prompt, provocou Ted, ordenando a IA a pegar seu emailzinho e transformá-lo em um textão longo e detalhado.

Nosso John Smith aperta send; do outro lado, o destinatário recebe o tijolão e naturalmente ordena sua IA a resumir todos aqueles caracteres em amigáveis bullets. É para uma coisa besta assim que precisamos de data centers piramidais consumindo água e energia em quantidades colossais?

Ted tem várias respostas. Todas destoam dos press-releases das big techs. Você pode ouvir a palestra completa aqui. Vais precisar de um esforcinho.

Tá lá no meio a minha pergunta pra ele.

Em uma entrevista em 2010, Ted explicou a límpida diferença entre histórias conservadoras e progressistas. Tem um tipo de história em que o mundo é de um certo jeito e aí aparece repentinamente uma novidade. Um cataclisma, uma invenção, um vetor poderoso de mudança qualquer. Isso provoca uma grande mudança e impõe perigosos desafios e decisões.

Ao final da história, o desafio foi enfrentado, o equilíbrio restabelecido e tudo volta a ser como era. Essas histórias são conservadoras, “o bem venceu o mal”.

As histórias progressistas também têm disrupções como premissa. Mas no final, as coisas mudaram e nunca mais voltarão a ser como antes. São histórias que reconhecem uma sociedade e existência dinâmicas, não estáticas.

Minha pergunta para Ted foi: “Como alguém pode contar uma história progressista, que seja imaginativa, eletrizante e inspiradora – e não ingênua?”

A resposta:

“Existem certos modelos de histórias. Há um modelo de história muito comum em que implicitamente, o mundo começa como um lugar bom, o mal invade, o bem e o mal lutam. No final, o bom derrota o mal e o mundo volta a ser um lugar bom. Muitos estudiosos disseram que esse modelo de história geral é implicitamente conservador. Porque é sobre restaurar o status quo.

Há outro padrão para histórias, que é mais comum na ficção científica. O mundo começa como um lugar familiar e algo novo aparece – é uma nova invenção, uma nova descoberta. Ela muda as coisas para muitas pessoas.

E então as coisas nunca voltam a ser do jeito que eram. O conto termina em um lugar diferente do que começou. A história acaba com o mundo sendo transformado.

Este padrão é progressista porque é sobre uma mudança do status quo… Não quer dizer que é melhor. Não é que de repente os problemas estão todos resolvidos.

Não é “progressista” no sentido de politicamente tornar as sociedades mais egalitárias. Só reflete a inevitabilidade de mudança. Às vezes, a mudança é positiva, às vezes, é negativa. Geralmente, é uma combinação de ambas.

Então, eu diria que uma história é ingênua se ela te dá apenas os pontos positivos e não reconhece os negativos, ou se ela sugere que isso seria fácil.

Qualquer história que reconheça que haverá consequências negativas e que não é sobre restaurar o status quo oferece a possibilidade de alguma interpretação progressista. Ela será sobre a possibilidade de transformação.

Então, escrevermos sobre a possibilidade de mudança não é ingênuo.”

Precisamos de mais histórias assim. Eu preciso; contar e que me contem.

Elas não oferecerão soluções simplórias ou definitivas. Não trarão com seu ponto final o Final. Buscarão o equilíbrio que a complexidade impõe. Imporão imaginação e esperança.

Enterremos as narrativas simplórias e esquemáticas. Pro inferno com o tedioso derrotismo e o otimismo boboca. Adeus final feliz, nunca mais apocalipse.

A resposta de Ted Chiang não se limita ao imenso, sempre em expansão território da ficção-científica. Se aplica a qualquer história.

Também para as histórias que contamos para nós mesmos – e sobre nós mesmos.

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