Memória de Santarém: Palmerinho

Por Lúcio Flávio Pinto (transcrito do portal OEstadoNet)

Meus dois primeiros amigos na vida foram o Serginho e o Palmerinho, em Santarém. Serginho morreu muito cedo, criança. Ao pular da janela da sua casa, uma bela casa antiga, caiu sobre um cachorro. O cão que o mordeu estava com raiva, transmitindo a doença à sua infeliz vítima.

Infeliz, sim. Todas as manhãs eu fugia de casa, caminhava dois quarteirões e esperava o meu companheiro de fuga. No dia fatídico, me atrasei ou me bloquearam a saída, e não fui aguardar o primo. Ele decidiu então ir atrás de mim. Acompanhei seu martírio da entrada do quarto, sem coragem de entrar. O sofrimento foi geral.

Serginho morreu como um cão furioso. Era lourinho e branco como eu. Foi direto para o céu. Em uma foto da família, apareço no que hoje chamaríamos de jardim de inverno, onde a tia Mary plantara parreiras, cheias de flores, mas sem frutos. Eu estou em pé e seguro a mão do primo, que está dentro de um velocípede (ou carrinho, a memória também foge). Nossos cabelos são brancos, sem dar o devido contraste à fotografia. Identidade física e espiritual. Efêmera e imortal.

O outro amigo nessa primeira metade dos anos 1950 foi o Palmério Dória de Vasconcelos, o Palmerinho, segundo dos três filhos do grande goleiro Palmério, o “guarda-vala” (ou “goal-keaper”) do Paysandu na goleada de 7 a 0 sobre o meu segundo Leão da pelota (o primeiro foi o de Santarém, o São Francisco, que deu no Remo de 5 a 1 “e se quisesse daria de mais”).

Seguimos nossas trajetórias, ora um ao lado do outro, ora em trilhas distintas, eventualmente esgrimindo nossas divergências, até ontem; 74 anos depois do nascimento em comum na então capital do futuro (que nunca chegou) Estado do Tapajós, a terceira maior cidade da Amazônia, o lugar que gerara dois barões no segundo império, Palmério se foi, ontem, em São Paulo, aonde vivia desde muito tempo, após longa enfermidade.

Também eu ia atrás dele. No caso, era a escola particular que frequentava, num local mais distante, no bairro de ancestralidade portuguesa, em contraste com a Aldeia, remontando aos indígenas originais, reduto da família do meu pai, de imigrantes cearenses, como milhares, alguns no birro considerado pobre e outros na colônia Mojuí dos Campos (hoje município), reduto eleitoral de Elias Pinto.

Eu sentava na batente da entrada da escola primária e aguardava meu companheira de brincadeiras. Certo dia, ouvi um grito vindo da sala de aula. Eis que surge o fugitivo, em corrida disparada, que acompanhei. Repreendido por mais uma das muitas transgressões que aprontava, Palmerinho agarrou a saia da professora e começou a puxar, numa versão risonha e franca do que viria a dar, nos nossos dias, nessas bestiais agressões cometidas no outrora templo do saber e do conhecimento hoje reformatório não assumido.

Em outro dia, pegamos lençóis, amarramos às costas, já os transformando em capa do traje do Capitão Marvel, que víramos no dia anterior no cinema, subimos na marquise do Olímpia e corremos para o voo programado. Um raio de lucidez interrompeu minha corrida e freei à beira do vácuo. Palmério, mais louco, continuou – e se esborrachou. Mas rimos da aventura.

Outra vez, brincávamos na praça da Matriz, onde a rua na qual morávamos se encerrava (ou começava), sob chuva forte. Escorregamos e só não fomos parar no rio, que estava cheio, porque alguém nos agarrou e salvou. Passado o susto, continuamos a brincadeira.

Eu vim primeiro para Belém com a família. Ele veio logo depois. Os encontros passaram a se dar na Vila Letícia, no Reduto, Na curta e estreita via de acesso às quatro casas enfileiradas, disputávamos o gol a gol de cabeça, que atraía moleques das redondezas. Bem suprido do instrumento de jogo, fui campeão da modalidade, praticada com bolas de papel bem amarradas e protegidas por meia de mulher.

Havia também torneios de botão, esporte conhecido como celotex, disputados como se fossem os campeonatos oficiais, que tinham por palco a sede da Tuna, na avenida Presidente Vargas.

Também havia as competições de dança de salão, na qual o páreo era o Waldemar, o irmão do Palmerinho. E passávamos horas ouvindo música, bossa nova e jazz. Sob a proteção da dona Nazaré, a super-mãe.

E depois? Há muitos depois. Mas fico por aqui. Como sempre, Palmério Dória de Vasconcelos foi na frente. Te pego, cara.

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