
Comentário do filósofo Paulo Arantes, sobre o projeto de Lula para o Brasil, em entrevista ao caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo:
“O que eu estou dizendo é que, se você me disser: ‘Qual é o projeto do lulismo?’. Eles continuam sem nenhum projeto, como não tinham em 2003. Dois mil e três era um discurso progressista, desenvolvimentista, redistributivista. Continuará sempre assim: proteção social, tudo pelo social, tudo pelo emprego, não tem nada de novo. A novidade, de fato, que o lulismo fez e que nós não prestamos atenção e não soubemos valorizar, só valorizamos quando veio o bolsonarismo, foi essa redução de danos. Isto é, o lulismo foi um anteparo para essa destruição inerente ao capitalismo nessa sua fase atual destrutiva, em que ele destrói o seu próprio fundamento, que é a fonte do valor, o trabalho vivo.
Ao mesmo tempo, não se desfaz dessa forma fetichista, que é a relação pela mercadoria. Daí essa máquina infernal que vai sobreviver ao fim físico do mundo pelas mudanças climáticas. O capitalismo não acaba por si mesmo, ele vai continuar a destruir, mas o mundo acaba antes. Esse é um prognóstico.
O governo Lula fez aquilo que não imaginava que fosse fazer: reduzir danos. Isto é, ele comprou tempo para postergar cada vez mais esse encontro de contas, esse ajuste de contas que será feito no fim. Como ele comprou tempo? Ele tinha dinheiro do boom das commodities. Ele pôde irrigar com cash, com dinheiro vivo, essas pontas mais explosivas do tecido social, como se diz no jargão, que não existem mais. Então, ele irrigou as periferias de empregos, de dinheiro, programas sociais muito bem-planejados e desenhados. Funcionaram. Esses programas sociais foram desenhados para segurar as pontas, para o muro não ruir, e funcionou muito bem — todas as contrapartidas, muito bem-desenhadas —, é ‘best practice’ no mundo inteiro. Como controlar os pobres sem mudar a sociedade, esse é o exemplo do Brasil. A Índia copia, o Paquistão copia, a Indonésia copia, a África copia. Todo o mundo quis fazer igual até que veio o bolsonarismo e destruiu isso.
O bolsonarismo apressou o fim do mundo, em certo sentido, porque ele destruiu esse anteparo de gestão desse caos terminal no qual nós vivemos, que se chama capitalismo e que o lulismo estava contendo dizendo que estava fazendo outra coisa: avançando o processo social, desenvolvimento, emancipação, os direitos. Ninguém discorda disso. Pode falar à vontade, mas estava fazendo isso, e eu acho que isso foi muito bom para o Brasil. Foi bom nesse sentido: você pega a cracolândia e reduz danos. É ótimo, ninguém é contra, precisa ser muito energúmeno, de extrema direita, para passar o trator em cima.
Eles fizeram isso com sucesso e um sucesso tão grande que precipitou a queda da Dilma, que eu acho que foi uma grande manobra de luta de classe. ‘Esses caras estão muito fortes, estão ganhando todas as eleições, vamos tirá-los do caminho’. E tiraram em uma boa, sem disparar um tiro e cumprindo a lei. Isso se chama luta de classes, que a esquerda esqueceu.
Aí veio o pesadelo bolsonarista, que é o fim dessa política de redução de danos, que é pressão para que o reino da delinquência, portanto o mais forte, da milícia ao presidente da República, passem a mão naquilo que lhes convém. Pode ser uma farinha de cocaína, pode ser uma joia do rei da Arábia Saudita. Está tudo no mesmo bolo da rapinagem. Era isso que estava acontecendo e, portanto, o grande capital achava que ia tirar sua lasquinha também, porque para ele não teria mais limites, mas ele viu que teria limites — um desses limites é físico, precisava de um planeta para explorar.”