E raça não é religião. Estrelando Emicida

Por André Forastieri
O livro infantil de Emicida foi rabiscado pela mãe de um aluno, em uma escola particular de Salvador. “Amoras” é sobre uma menininha negra que aprende com seu pai sobre ícones como Malcolm X, Zumbi dos Palmares, Martin Luther King.
A mulher rabiscou seus comentários nas margens do livro e sobre as palavras do músico. Também botou lá uns salmos, criticou a ausência da bíblia nas escolas e zoou com a origem do nome Emicida.
Trata-se de intolerância religiosa? Ou racismo religioso, como diz a criminalista Dandara Amazzi Lucas Pinho?
Acho que é só destruição de propriedade alheia, de um livro da escola. Tanto faz o que foi rabiscado, comentários cristãos ou “Satan Rules”, “Lula lá” ou “Celacanto Causa Maremotos”.
Não é pra deixar barato. Livros são muito importantes. Eles precisam ser respeitados. Não porque pregam o que defendemos, mas porque nos contradizem, provocam, perturbam.
Contestar a divindade dos Orixás não é racismo; as religiões de matriz africana permitem fiéis de qualquer raça. Você também não precisa ser árabe para ser muçulmano; e críticas às palavras do Corão ou dos Imãs não são racismo. A Bíblia está repleta de instruções cruéis da Era de Bronze. Apontá-las não é preconceito nem perseguição.
Vejo assim. Outros olhos verão diferente. Posso mudar de posição, quem sabe lendo um livro. Diversidade e debate são riqueza. Dogmas empobrecem.
Nem sempre é fácil para mentes arejadas aceitar, mas os dogmas cristão, judeu, islâmico determinam que seu deus é o único Deus. Os outros são idolatria, falsos deuses, ou dependendo da interpretação, demônios.
É isso que seus livros sagrados dizem, e estes são os únicos livros sagrados para estas religiões. É isso que em tese deveria ser seguido à risca pelos seus fiéis. Não gostou, vira apóstata. Tem país que pode, tem país que é crime. Aqui pode.
Aqui também pode mistureba. É cada vez mais comum o bandejão da fé. Customize sua crença, como um café do Starbucks. Gourmetize até, porque não? Certamente é coisa menos perigosa, menos prenhe de fundamentalismos.
O livro de Emicida é propaganda de umbanda? Não interessa se é ou não, fora para talibãs como a mãezinha vândala.
A propaganda do cristianismo está em todo lugar, faz parte da paisagem, e segue à toda. Até nas cruzes de nossos tribunais e repartições públicas, para escândalo de uma advogada judia que conheço. Se pode proselitismo de uma religião, deveria poder de todas, né?
Todo livro merece respeito em vez de vandalismo, físico ou virtual. Inclusive livros que defendem o abominável. Sim, melhor que se publique do que se proíba “Mein Kampf” etc. Discordas, possivelmente; sei que sou voto vencido nessa.
Na minha religião, todo livro é sagrado. O do Emicida também. Não li e não preciso ler pra saber.
As religiões de matriz africana merecem tanto respeito (e desrespeito) quanto as de matriz levantina, chinesa, indiana, inuit ou qualquer outra. Respeitemos as pessoas que crêem (e descrêem). Desrespeitemos a autoridade sobrenatural de divindades e de seus representantes terrenos, até que comprovadas por observadores independentes.
O mundo será tão mais justo e agradável quanto mais ateu, mas só nos livraremos de crendices no dia de São Nunca. Um bom caminho é liberar as leituras e regulamentar o ecumenismo.
Dá pra começar com igreja tendo CNPJ e pagando imposto progressivo. E prioritárias aula de religião comparada, e de ateísmo comparado, pra meninada do ensino fundamental. É de pequenino que se torce o pepino.
E sem rabiscar, reescrever, proibir ou queimar livros, por favor. Eles são sagrados.