Os mistérios de Calvin e da Senhora Gorda

Bill Watterson está de volta. Mas na verdade ele nunca nos deixou

Por André Forastieri

Bill Watterson dará o ar de sua graça neste abençoado 10 de outubro de 2023. O criador de Calvin é o escritor de “The Mysteries”, em parceria com o cartunista John Kascht. São poucas e preciosas 72 páginas. Não é quadrinho, é livro ilustrado. Parece sombrio e esquisito. Só sabemos que é sobre um reino assombrado por calamidades em série, um rei e um único cavaleiro que sobrevive a uma longa jornada. Pela arte que vemos, não parece nada com Calvin. Ótimo.

O mundo não recebe uma nova obra de Bill tem quase três décadas. Foi no dia 31 de dezembro de 1995 que Bill Watterson publicou a última tira do menino e seu tigre. É famosa, aquela que acaba com eles voando no trenó, vamos explorar!

Os livros de Calvin nunca saem de catálogo. Você precisa de todos. Os fãs mais apaixonados exigirão “Desbravando Calvin e Haroldo – A Exposição”, catálogo de uma exposição de 2014.

Traz tiras de Watterson, alguns de seus primeiros trabalhos, uma análise de sua arte, uma entrevista exclusiva. E também autores que o influenciaram, como Charles Schulz (Peanuts), George Herriman (Krazy Kat) e Alex Raymond (Flash Gordon e cia.).

Há quem garanta que Bill Watterson é não só um dos maiores criadores da história dos quadrinhos, mas um dos maiores criadores de qualquer arte. O fato é que é uma obra especialíssima. Vamos pular a velha lenga se HQ é arte.

O que é absolutamente único sobre Calvin: nunca houve uma tira de jornal interrompida no auge de seu sucesso. E nunca houve personagem tão popular que não gerou merchandising, só porque seu criador era contra.

Numa era em que todos estão atrás de criar uma propriedade intelectual e capitalizar, Bill Watterson deu a maior prova de louco possível. Rasgou dinheiro. 

Imagine o que ele teria faturado se permitisse lancheiras, bonecos, desenhos animados, camisetas, games, brinquedos e tal de Calvin e seu tigre de estimação, Haroldo, ou, na gringa, Hobbes. 

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Vamos sonhar? Imagine um desenho de Calvin produzido com o padrão de qualidade e delicadeza que a Pixar imprimiu a filmes como Wall-E e Toy Story . É coisa para bilheteria de U$ 300, U$ 400 milhões. E sequências. E, bem, merchandising à beça.

Nos dez anos em que produziu a tira, Bill ganhou bastante dinheiro, além de todos os prêmios disponíveis para cartunistas. Continua ganhando. As tiras antigas continuam sendo republicadas por jornais de todo o mundo, os jornais que sobrevivem, claro. As coletâneas em álbuns continuam vendendo muito bem.

Mas podia ser bilionário hoje. Ou ter vendido Calvin e Hobbes para a Disney. Nada feito. Watterson era contra a exploração comercial de seus personagens, e pronto. Abriu mão da grana. 

Há que ser grato a Bill Watterson por ter feito o que fez, com o talento e sensibilidade que fez, e parado de fazer quando sentiu que era hora de parar. Calvin sempre terá por isso um lugar especial no meu coração e nos de seus muitos admiradores. E também por ser prova viva de que dinheiro não é tudo, não sempre, não para todo mundo.

Por um curto e inesquecível período tive meu próprio Calvin em casa. Quando Tomás aprendeu a ler, apresentei o menino e seu tigre. Lembro com saudade quando encontrou pela primeira vez seu novo amigo. Amigo para vida inteira, não menos real porque imaginário.

Os livros de Calvin no Brasil carregam o selo da editora de que fui co-fundador: Conrad Editora. Não tenho nada a ver com a Conrad desde 2005. Hoje é parte de um grande grupo editorial e publica muita coisa boa. Mantenho o carinho pelo filhote. É uma satisfação ver à frente do selo o velho companheiro de aventuras editoriais e grande editor, Cassius Medauar.

O detalhe é que Bill abriu mão não só da grana grossa, mas do sucesso e da fama, também. Se ele tocar a campainha da sua casa, você jamais reconheceria.

Sempre foi muito reservado. Ninguém sabe como é sua cara hoje, e mesmo as fotos antigas são raras. Não se trata um oligofrênico intratável. Bill se dá bem com os pais, é casado com a mesma mulher desde 1983, mora em Cleveland, pinta quadros a óleo – e isso é tudo que se sabe sobre ele.

Depois de interromper a criação de novas tiras, em 1995, ele simplesmente não criou mais nenhum personagem, nem escreveu novas histórias. Dá raríssimas entrevistas. Já não falava com jornalistas quando fazia Calvin.

Em uma entrevista no início de 2010, sua primeira desde 1989, explicou por que parou: porque já tinha dito tudo que tinha a dizer.

Bill Watterson não me lembra exatamente J.D. Salinger, mas um de seus  personagens – algum dos irmãos Glass, ou um compósito da família. Ou talvez seja o espírito zen-peralta de Calvin que me transporte para Franny e Zooey, ou Um Dia Perfeito Para Peixe-Banana.

Salinger também exigia controle sobre seus livros – as capas sempre limpas, só com o título – e não queria nem pensar em versões para o cinema de O Apanhador no Campo de Centeio. Se escondeu no auge do sucesso. O que produziu nas décadas recluso? Mistério.

Morreu em 2010. Em 2019, seu filho anunciou que tem muito material inédito, e que ele está trabalhando com editores para selecionar o material, que uma hora sai, e segue a enrolação. 

Talvez a principal ligação entre os dois: ninguém melhor que Salinger explicou a decisão de Watterson.

Foi Seymour Glass quem alertou seu irmão mais novo para a presença da senhora gorda. Eles estão para subir em um palco, e Seymour diz para Zooey:

“Você precisa engraxar os sapatos.”

Zooey diz: “Porquê? O palco está em um nível mais alto do que a plateia. Ninguém vai ver meu sapato sujo.”

Seymour o repreende: “Você precisa engraxá-los para a senhora gorda.”

Existe uma pessoa para quem a gente cria – quando atua, quando escreve, quando toca um instrumento, ou bola uma tira de jornal; talvez quando a gente faz um molho de macarrão, ou conversa com alguém que ama.

É a senhora gorda, e temos que fazer nosso melhor por ela.

E toda audiência é a senhora gorda, todos nós, e a senhora gorda é divina, é sagrada. Ela é a razão porque fazemos o melhor de nós. E ela é a razão porque devemos parar de fazer o que não exige nosso melhor.

Quando entramos em contato com algo que foi feito pensando na senhora gorda, a gente percebe. Essa percepção não nos deixa.

Quando a gente vê a senhora gorda, não consegue mais deixar de ver.

Meio misterioso, eu sei. Leia Franny e Zooey. Leia Calvin e Haroldo. Tá tudo meio explicado lá. Quem sabe o novo livro do Bill Watterson ajude a gente a entender melhor..

A senhora gorda está sempre ali – esperando que a gente faça bem, faça mais, faça o nosso melhor.

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Minha família conhece a Ereni tem uns quinze anos. É uma mulher batalhadora, já bisavó e querida de muita gente. Sobreviveu à tragédia na Barra do Sahy – mas perdeu suas casinhas lá. Eram a única coisa que tinha, fora um terreno na Bahia.

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