POR GERSON NOGUEIRA
Só nas primeiras vezes em que viajei para fora do Brasil pude ter a verdadeira dimensão de Pelé, sua grandiosidade como atleta e representante de um país inteiro. Em vários momentos, sem saber me comunicar bem na língua dos anfitriões, eu me identificava como jornalista brasileiro e a reação vinha como um relâmpago feliz. A pessoa abria um sorriso imenso e a primeira palavra que vinha era “Pelé”. Algo realmente mágico, comovente até.
Continuou sendo assim nas outras andanças pelo mundo. África do Sul, Áustria, França e até no Qatar, onde estive recentemente. Pelé abria portas para o Brasil e os brasileiros. Ouvi um repórter de TV dizendo ontem que o maior jogador de futebol do planeta tirou muitos brasileiros de enrascadas sérias em viagem por países distantes. Sou testemunha viva dessas situações.
Pelé permanece vivo na memória de todo mundo, principalmente dos fãs estrangeiros, que o enxergam de maneira mais generosa do que nós, brasileiros. Sim, temos uma dívida tremenda com o Rei. Nunca ele foi reconhecido como o gigante que foi, tão imenso que em muitos momentos era a personificação do Brasil na visão dos estrangeiros.
O sorriso de meus interlocutores nepaleses, etíopes, filipinos, catarianos e nigerianos nas ruas de Doha indica que o Rei era eterno no imaginário de todos. Dribles, gols espetaculares, jogadas impossíveis, cabeceios portentosos, domínio fabuloso da bola nos pés. Ninguém esqueceu essas virtudes do gênio, o registro é definitivo. Ingenuamente, pensamos que a falta de imagens mais precisas de todos os feitos de Pelé seria um ponto a lamentar em relação à avaliação pública de seu tamanho no esporte.
Bobagem. Nada escapou ao olhar atento dos adeptos do futebol. Pelé é endeusado pelo muito que fez, como também pelo que não conseguiu fazer. Como aquele quase-gol em chute lá do meio de campo, que tentou malandramente na estreia do Brasil em 1970. A bola, em curva, passou a centímetros do poste esquerdo da Tchecoslováquia ante o olhar perplexo do goleiro Viktor.
Ou naquele drible da vaca radical sobre Mazurkiewicz, na mesma Copa, no clássico com o Uruguai. Aplicou um corta-luz genial e apanhou a bola após se esquivar do goleiro. Por um capricho dos deuses, a finalização saiu também a milímetros de entrar.

Tostão, solista maravilhoso nos gramados e hoje cronista como poucos, observa que Pelé reuniu todas as valências que fazem um jogador tecnicamente completo. Mas, acima dos demais, ele tinha a faísca do gênio, a tal velha chama que diferencia os fenômenos dos simples mortais.
A reverência mundial, comoção expressada entre tristeza e gratidão, que desde ontem se estende pelo mundo, é a prova maior de sua importância planetária. Em meio às homenagens que seguirá recebendo nas próximas horas, Pelé é a prova de que o Brasil pode ser distinguido por seus talentos e riquezas.
Sua coroa no esporte mais popular do mundo jamais mereceu contestação. Símbolo sagrado do futebol-arte, o Rei elevou a modalidade ao nível de super espetáculo. O homem que fez do 10 um número singular nos campos do mundo. Antes, era apenas o penúltimo numeral num time de futebol.
Pelé uniu países, raças e torcidas. Ninguém no mundo fala de Pelé sem sorrir. Meninos, eu vi. Não me contaram. Longe de casa, senti-me homenageado quando ouvi seu nome ser pronunciado, quase sempre sem sotaque, por pessoas das mais diferentes origens. O Brasil fica muito maior por ser a pátria-berço de Pelé, o maior de todos. Deus salve o Rei!

Brasil do Rei mostrou que vencer era possível
Quando o Brasil ganhou a Copa de 1958 uma onda de pessimismo varria o país de Norte a Sul. Havia um sentimento de desesperança pelos sérios problemas sociais, econômicos e as diferenças que sempre nos atormentaram. Acima de tudo, havia uma ferida não cicatrizada pela frustração de 1950, quando a Seleção Brasileira foi superada pela Celeste uruguaia no Maracanã. Dizia-se que o Brasil não iria nunca levantar a cabeça – ou a taça. O espírito de vira-lata dominava a cena.
Pelé e seus companheiros traçaram em gramados suecos uma nova rota, vitoriosa e feliz. A partir do título mundial, o Brasil arrancou para um protagonismo que nunca antes havia obtido em nenhuma outra área de atividade. Pela primeira vez, com o tricampeonato conquistado no México, em 1970, estabeleceu-se como potência mundial. Era mais que futebol. Era um sopro fabuloso de alegria e confiança na autoestima nacional.
Significou muito mais do que se pode imaginar. É incalculável a contribuição de Pelé – com títulos em 1958, 1962 e 1970 – para a consolidação de um Brasil mais seguro de suas forças e pronto para fazer história. Até hoje, após cinco títulos mundiais, ninguém superou a pátria de chuteiras.
Pelé abriu caminhos, tornou o futebol mais globalizado e pontificou como o primeiro astro realmente internacional do esporte, como bem lembra Ruy Castro. Antes, Puskas e Di Stéfano eram reverenciados, mas com brilho restrito à Europa. O preto Pelé foi além, rompeu fronteiras, chegou a todos os continentes. Chegou à glória suprema. Que sorte a nossa de tê-lo como irmão.
(Coluna publicada na edição do Bola desta sexta-feira, 30)