Jogão redime as últimas finais

POR GERSON NOGUEIRA

As últimas quatro decisões de Copas foram frustrantes, sem graça mesmo. Os vitoriosos celebraram, mas o torcedor ficou com a sensação de que merecia mais. A de ontem, no estádio Lusail, entre argentinos e franceses, foi diferente de tudo que se viu nessas duas décadas. Intensidade, técnica e gols. Por óbvio, a emoção transbordou. A cada instante, um lance de tirar o fôlego, um ritmo quase basqueteboleiro.

Relembro a Copa de 2006, por exemplo, cujo único fato a chamar atenção foi a cabeçada de Zidane em Materazzi. Quatro anos depois, na África do Sul, Iniesta fez um gol bonito num jogo esquálido de emoções. A final de 2014 no Brasil foi outro confronto chocho, entre alemães e argentinos, fechado também em 1 a 0. Veio 2018 e a pissica se repetiu no aspecto técnico, com pouca coisa memorável.

Pois ontem, a golpes de bom futebol, veio abaixo essa sequência de jogos desenxabidos. No 1º tempo, um show argentino, exercendo na plenitude a vocação centenária para o esmero nos passes e lançamentos – temos que reconhecer que os hermanos são mestres nisso, há décadas.

Di María, Álvarez, Messi, Enzo Fernández e De Paul eram absolutos, empurrando a poderosa França para uma posição acanhada, quase vexatória. Dois a zero pareceu até pouco. O tri estava praticamente no papo.

Veio a etapa final e Didier Deschamps mexeu no time, recolocou a França em seu jogo habitual, de avanços e recuos programados, mas sem a submissão do primeiro tempo. A 10 minutos do fim, Mbappé mudou o final do filme, com o lançamento que resultou em pênalti e a finalização caprichada no golaço de empate.

A partida era um turbilhão, podia acontecer tudo naqueles minutos finais. E a França por pouco não cravou a virada porque o carniceiro Otamendi vestiu o traje habitual e ia entregando a paçoca em dois vacilos.

Veio a prorrogação, com 15 minutos iniciais de altíssimo nível. A coisa pegou fogo mesmo na segunda metade. Do nada, Messi surgiu como centroavante e desempatou. A zaga bambeou, entregou novo pênalti e Mbappé beliscou a glória, com o terceiro gol no jogo.

Para completar o roteiro de suspense só mesmo a decisão em penalidades, atestando também o equilíbrio reinante na final. Com determinação e competência – dos cobradores e do goleiro Martinez – a Argentina foi lá e guardou a taça. Muito justo.

Messi se consagra com a conquista que faltava, embora já fosse o melhor do mundo, mesmo sem Copa. A Argentina reina no continente e o Brasil ganha novo motivo para se morder de inveja – além do papa Francisco e do Nobel (Esquivel), mas seguimos absolutos. Cinco títulos mundiais.  

Memes moralistas não resolvem nosso problema

Centenas de memes pipocam na internet com mensagens moralistas e cheias de censura aos cabelos pintados dos jogadores do Brasil, à babaquice da carne coberta de ouro e até sobre a presença de famílias de atletas na concentração brasileira. Tudo lorota de quem parece se interessar por futebol apenas de quatro em quatro anos.

Em Doha, era conhecida a história dos churrascos e até festas na concentração da Argentina e de diversas outras seleções. Normal, principalmente entre atletas jovens, que não perdem a chance de se divertir. Não se pode condenar ninguém por isso. O que é fundamental é analisar o fator campo/bola.

Onde a Seleção Brasileira errou tanto no Qatar, a ponto de parecer um bando de peladeiros reunidos às vésperas da Copa?

Caso as críticas foquem esse lado, tudo bem. Tite e sua comissão técnica pecaram por arrogância excessiva, abraçados a um esquema que valia para confrontos com sul-americanos, mas que caducou por completo na batalha dos grandes jogos que a Copa sempre traz.

E olha que o Brasil nem pegou um adversário mais taludo, pois nem isso pode se dizer da Croácia, um time pouco mais que arrumadinho.

Cabem críticas também ao comportamento avoado do time quando vencia a partida decisiva contra os croatas e resolveu adiantar seus volantes quando o correto era justamente recuar para assegurar o resultado. Faltou maturidade e noção de perigo.

Nenhum dos que estavam em campo é inexperiente. Todos sabiam de suas obrigações, principalmente Fred e Casemiro, os dois volantes que queriam a todo custo fazer mais um gol.

Um pouco antes, na convocação, cabiam críticas (e foram feitas) aos critérios. Levar Daniel Alves é um pecado tão primário quanto insistir com Gabriel Jesus, já lesionado quando chegou à Doha, e levar laterais bovinamente defensivos, coisa de técnico do século passado.

Enumerei erros que todos conhecem bem só para reforçar o ridículo dessas manifestações comparativas com a Argentina, que ganhou o título que tanto sonhava, mas que teve lá seus pecados também, como os apagões contra Holanda e ontem mesmo. Como venceu, ninguém vai ligar para isso.

O fato é que a Argentina teve sangue-frio quando foi preciso, segurou a onda em momentos ruins. Força emocional e mentalidade vitoriosa são virtudes dos grandes campeões, mas de nada adiantaria se, naquele último lance da prorrogação, o francês acerta o alvo.

Assim é o futebol, assim é a vida. 

(Coluna publicada na edição do Bola desta segunda-feira, 19)

Missão Qatar: bastidores da cobertura da grande final

Dia de final de Copa do Mundo é um negócio que foge à rotina da cobertura. O trajeto para o estádio Lusail foi ruidoso, com os jornalistas argentinos já uniformizados e fazendo algazarra, como a prever o que aconteceria horas depois. No ônibus Fifa, soul music americana misturada com música árabe e algum rock meio anos 70. Quase nenhuma preocupação com a prevenção à Covid-19. Sou um dos poucos usando máscara – de vez em quando, até percebo olhares meio reprovativos. Não importa. Não relaxo, mesmo já tendo tomado a quinta dose.

O rigor na segurança ao longo de toda a Copa – com revista de material e equipamentos até na saída das instalações de mídia e dos estádios – fez com que a fila para entrar no Lusail se estendesse por quase 200 metros, depois de uma pernada de quase 2 quilômetros entre o estacionamento e a entrada da arena.

No estádio, um dos mais modernos de Doha, construído exclusivamente para Copa, mais de 89 mil pessoas se distribuíam pelas arquibancadas e cadeiras, com maciça presença dos argentinos (mais de 80% dos presentes).

A Europa, definitivamente, não prestigiou a Copa. Os preços proibitivos e, principalmente, a informação sobre a proibição de bebidas alcoólicas desmotivaram as hordas de biriteiros que seguem seleções como a da Inglaterra, Holanda, Portugal, França e Espanha. Outra explicação é o período do ano, longe das férias mais prolongadas dos trabalhadores europeus.

Diante desse cenário, só deu Argentina desde as proximidades do Lusail até a grande catarse dentro da arena. Em torno do estádio, mais de 10 mil pessoas sem ingressos tentam pelo menos viver a atmosfera da decisão. Argentinos usam placas de papelão com ofertas por ingressos.

A maioria dos lugares na tribuna de mídia vai para os jornalistas dos países finalistas – é um critério usado em todos os jogos. Mas, de maneira geral, todos são contemplados com tíquetes para bancada, com direito à mesa para uso do computador.

Dessa maneira, os brasileiros acabam ficando agrupados e velhos e novos companheiros se reúnem. Na foto ali de cima, estou com um dos craques do jornalismo esportivo, Luiz Antônio Prósperi (chapéu) e Marcos Paulo Lima, do Correio Braziliense, ao lado de dois amigos que não anotei os nomes.

A cada nova Copa, uns e outros costumam dizer que é a última, que o cansaço é grande, os sacrifícios idem. Curiosamente, na seguinte todos estão ali de novo. Assim será, certamente, em 2026, no Mundial previsto para Estados Unidos, Canadá e México. Espero ter saúde e motivação para marcar presença de novo.

(Nos próximos dias, quando em viagem para o Brasil, publicarei aqui outros registros do chamado making off da cobertura aqui no Qatar)

Em jogo eletrizante, com empate no tempo normal, Argentina triunfa nos pênaltis e é tricampeã do mundo

POR GERSON NOGUEIRA

Uma final eletrizante, talvez a mais sensacional da era moderna. Com 3 a 3 no placar, a Argentina venceu nos pênaltis e levantou o título de tricampeã do mundo. O jogo foi emocionante do começo ao fim. A Argentina dominou o primeiro tempo, fez 2 a 0, mas caiu de rendimento na etapa final, quando a França reagiu e foi buscar o empate no tempo normal e na prorrogação.

Desde os primeiros movimentos, só deu Argentina. Com categoria e o talento de Lionel Messi, o time alviceleste desfilou em campo. Passes precisos, lançamentos na medida para Di María, Álvarez e o surpreendente MacAllister caindo pela direita. A marcação francesa não encontrava bola. Griezmann e Dembelé completamente perdidos na cobertura pela faixa direita da defesa.

E foi justamente por ali que a Argentina achou o mapa da mina, através de Di María, que recebeu bola junto à linha lateral, driblou Dembelé e entrou na área. O ponta foi atrás e cometeu o pênalti, inteiramente desnecessário porque havia cobertura dentro da área. Messi pegou a bola e executou a cobrança, aos 21 minutos. Argentina 1 a 0.

Era pouco. O time de Lionel Scaloni seguia absoluto, invertendo bola da direita para a esquerda, usando De Paul como escape no meio e travando jogadas com a tradicional habilidade para faltas curtas e pancadas em rodízio. A França, dominada em seu campo, era inexistente no ataque. Sem transição, Mbappé pegou na bola três vezes, sem conseguir espaço para as arrancadas.

Giroud não recebia bolas na frente e era obrigado a voltar para ajudar no bloqueio de meio-campo. A Argentina, ao contrário, exalava tranquilidade e confiança. De repente, a bola chega a Messi, que passa a MacAllister e deste para Di María, que chegava na corrida. O tiro sai rasteiro, no contrapé de Lloris, que saiu do gol em desespero. Argentina 2 a 0.

Ainda mais desnorteada, a França saiu aos trancos e barrancos para o ataque, mas sem organizar nenhum ataque objetivo. O primeiro tempo terminou assim. Argentina, absoluta, trocando passes e gastando tempo contra uma França em estado de paralisia. Pelo que se viu nos primeiros 45 minutos, o título começa a se definir.

Logo na primeira investida do segundo tempo, quase o terceiro gol argentino. Bola enfiada no meio da área obriga Lloris a uma defesa arrojada. Claramente Scaloni armou seu time para matar o jogo nos primeiros minutos. A toada segue exatamente igual. Argentina sem errar passes, França correndo atrás.

Em determinados momentos, Messi e seus companheiros parecem se multiplicar em campo. Dembelé e Griezmann seguem sem rumo, a França depende de jogadas com os volantes e bolas esticadas, que nunca chegam ao destino certo.

Para controlar as ações, o time argentino recuou suas linhas e passou a esperar a França em seu campo. Desnorteada, a equipe de Mbappé seguiu errando todas na frente e abrindo espaço para perigosos contragolpes, puxados por Álvarez, Di María e Messi.

Aí o futebol, maravilhoso como sempre, resolve inverter as cartas. O tango argentino perde o compasso e a França chega ao primeiro gol, após lance iniciado por Mbappé que termina em pênalti. O próprio camisa 10 vai lá e diminui, a 10 minutos do fim.

Três minutos depois, novo lançamento na área argentina e Mbappé pega de primeira para empatar a final. O jogo foi para a a prorrogação, a Argentina seguiu se segurando mais em seu próprio campo, mas num descuido da zaga francesa Messi desempatou. O lance despertou dúvidas sobre a condição do jogador, mas o gol foi confirmado.

Quando tudo parecia decidido, eis que um chute de fora da área é interceptado com a mão pela zaga. Pênalti. Mbappé bate e converte. Seu terceiro gol na partida. No minuto final da prorrogação, uma bola na área argentina e quase sai o quarto gol francês.

Nos penais, a Argentina se sai melhor e vence por 4 a 2. Tricampeã (78, 86 e 2022), com méritos. Carnaval dos argentinos no estádio Lusail. Consagração de Lionel Messi, que nunca tinha conquistado uma Copa do Mundo.

Onde os fracos não têm vez

POR GERSON NOGUEIRA

Dia de final de Copa do Mundo é seguramente um dos mais importantes do calendário universal. É quando todas as coisas se encaixam, as placas tectônicas se acomodam, só para ver dois times em luta. O planeta vira mesmo uma imensa bola de futebol. Entendi a grandeza do momento aos 12 anos, ao ver a Seleção tricampeã no México.

Sabia da façanha de 1958 pelos relatos de meu pai José, em Baião. Não tinha noção de nada em 1962, quando o impávido ataque botafoguense (+ Nilton) conquistou o bicampeonato. Vim saber e valorizar anos depois. Não me frustrei, felizmente, em 1966, pois o futebol era apenas mais uma das coisas desimportantes que eu tinha em vista.

Aí em 1970 tudo mudou, os portais se abriram e o Brasil bom de bola entrou em cena na minha percepção de moleque. Gênios. Pelé acima deles, um ser de outro planeta. Os coadjuvantes inspirados estavam todos lá. Gerson, Jair, Rivellino, Tostão. Um time sem centroavante, mas onde todos podiam exercer essa função.

Uma seleção que precisou achar um lugar para Jairzinho jogar porque ele tinha mais vocação para entrar pelo meio da área. Felizmente, deram a ele a ponta direita, de onde, como furacão, ele avançou para fazer gols em todos os jogos daquele Mundial. Um recorde, até hoje.

Fiz todo esse intróito, meti o passado glorioso na conversa, só porque estou mesmo é morrendo de inveja de argentinos e franceses, que mal devem ter dormido nos últimos dias, na expectativa febril deste grande dia, quando até as guerras são paralisadas. Ao meio-dia, será como aquela volta interminável do relógio no clássico western “Matar ou Morrer”.

Didier Deschamps e Lionel Scaloni têm a honra e o privilégio de comandarem seleções que sobreviveram às intempéries do deserto catariano e aqui chegaram para a disputa derradeira. Deschamps tem Mbappé e Griezmann. Scaloni conta com Messi e Álvarez.

Caso o menino prodígio Mbappé vença, será bicampeão do mundo, como Pelé em 1958 e 1962. Caso Messi saia vitorioso, não haverá nada a acrescentar, pois Messi já é um fora-de-série. E o mundo sabe disso.

Bola na Torre

Guilherme Guerreiro comanda a atração, a partir das 19h30, na RBATV, com as participações de Giuseppe Tommaso e deste escriba baionense, direto de Doha, com um balanço da Copa do Qatar. Em pauta, os preparativos dos clubes para o Parazão e a Copa Verde. A edição é de Lourdes Cezar.

Benzema recuperado: treta ou guerra psicológica?

Uma briga mal resolvida parece estar por trás do entrevero de Benzema com a seleção francesa, particularmente com o técnico Didier Deschamps, que o deixou de fora do elenco que disputa a Copa depois que um exame médico detectou lesão considerada grave. O problema é que, duas semanas depois, o melhor atacante do mundo reapareceu lépido e fagueiro em jogo-treino do Real Madrid.

Ora, é claro que tem gato na tuba, como se dizia lá pelos idos de 1950. Benzema já havia sido descartado da seleção da França em 2018. Agora é excluído de novo, aparentemente de forma apressada, pois a recuperação foi rápida.

Com indisfarçado incômodo, Deschamps fugiu do tema na entrevista de quarta-feira, na concentração da França. Dembelé também fez cara de desentendido ao ser indagado. Parece haver uma nuvem de silêncio envolvendo o assunto dentro do escrete francês.

Na prática, como não foi oficialmente cortado da relação de jogadores, Benzema pode até jogar contra a Argentina, amanhã. Como o objetivo francês é o tricampeonato mundial, não seria nada absurdo se Deschamps deixasse o orgulho de lado e chamasse o centroavante para a decisão.

Duro mesmo é convencer o próprio Benzema, argelino de nascimento e um sujeito reconhecidamente de temperamento forte. Consciente das feridas históricas que envolvem Argélia e França, ele costumeiramente evita cantar a Marselhesa, o hino francês. Os companheiros gritam a plenos pulmões e Benzema fica ali, quieto, na dele. Um posicionamento político que desagrada muita gente no país do iluminismo.

Por outro lado, a simples perspectiva de que o camisa 9 pode ser uma arma secreta para a final deve estar deixando a cabeça de Lionel Scaloni em polvorosa. E se em cima da hora ele for escalado? É uma dúvida razoável, afinal um título importantíssimo está em jogo. Benzema, ontem, foi direto e reto nas redes sociais: “Não estou interessado”.

Há quem desconfie que tudo foi acertado entre Deschamps e Benzema, o que poderia abrir caminho para o retorno do jogador, a tempo de reforçar a esquadra francesa diante da Argentina de Lionel Messi. O problema é que a França já encaixou um sistema com Giroud funcionando bem como definidor e pivô. Mexer nisso agora poderia desarrumar o time. 

(Coluna publicada na edição do Bola deste domingo, 18)