Dia: 15 de dezembro de 2022
O triunfo da mediocridade sobre a sabedoria
Por Leandro Fortes

Eu estava lá, fardado, nos estertores da ditadura militar, de sentinela, próximo ao muro dos fundos de um quartel, em Barbacena, fazendo a primeira ronda da noite, metido em coturnos e numa japona de lã. Ouvia, ao longe, o som da multidão. Era 1984, o movimento das Diretas Já havia, finalmente, chegado à geleiras da Mantiqueira, mas no quartel, um internato militar, aquela realidade só existia para uns poucos que pescavam, na clandestinidade, os jornais que a soldadesca retirava do cassino dos oficiais e jogava no lixo. Eu tinha 18 anos, eu era um deles. Eu lia a coluna de Janio de Freitas.
Para saber mais, usei da prerrogativa de um cargo – o de presidente da Sociedade Acadêmica da escola – para fazer assinaturas da Folha de S.Paulo e da Veja, para que todos também soubessem. O Comando do Corpo de Alunos me chamou em audiência, queriam saber as razões daquele movimento. Ainda era ditadura. As assinaturas duraram só dois meses, mas eu já estava capturado.
No ano seguinte, em 1985, exilado da caserna, dos coturnos e das japonas de lã, eu estava de volta a Salvador, matriculado no curso de jornalismo da Universidade Federal da Bahia. Segui lendo Janio de Freitas, entusiasmado, como boa parte da minha geração, com o chamado Projeto Folha, tocado por jovens jornalistas comandados por um jovem herdeiro, Otávio Frias Filho, embora meu sonho de consumo não fosse a Folha, mas o Jornal do Brasil. Eu cumpria meu turno de estudante, pela manhã, e meu expediente de repórter na Tribuna da Bahia, pela tarde, e, quando anoitecia, me enfurnava na bolorenta biblioteca do velho diário soteropolitano para ler o que chamávamos de “jornais do sul” – Folha, Globo, Estadão e Jornal do Brasil, que só apareciam nas bancas da Cidade da Bahia depois das 16 horas. E lia Janio.
Passadas quatro décadas, ler Janio de Freitas e, de certa forma, calibrar minha visão política pelas análises desse grande jornalista tornou-se uma rotina de aprendizado constante. Minha e de várias gerações de jornalistas. A notícia de que a Folha o demitiu, aos 90 anos, pelo motivo torpe da contabilidade, em meio a um dos muitos passaralhos que a empresa vem promovendo, me deixou triste e indignado. No fim das contas, é a revelação final do mau caratismo dessa velha imprensa – torpe, obsoleta, reacionária – que, incapaz de formar quadros de verdade nesses cursinhos de trainee que adotou como filtro de entrada, decidiu se livrar daqueles que ainda lhe conferem algum brilho, sensibilidade e profissionalismo.
É a vitória da mediocridade sobre sabedoria.
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A campeã chega à decisão
POR GERSON NOGUEIRA

Um belíssimo jogo de futebol, aberto e franco, com boas oportunidades de lado a lado, mas com triunfo francês ao final. O gol de Theo Hernandez, logo aos 4 minutos, desmontou a estratégia marroquina de se fechar para depois pressionar o adversário. A situação gerou desconforto para o time africano, que sentiu o baque e só teve uma grande oportunidade no primeiro tempo.
E que oportunidade. Uma bicicleta de Yamiq estourou na trave de Lloris. Um susto e tanto para a armada francesa. Se sai gol ali naquele momento, quase ao final do primeiro tempo, a história poderia mudar de rumo.
Os franceses têm seguramente o time mais experiente da Copa, não em idade, mas em entrosamento. Quase todos os jogadores participaram da campanha campeã nos gramados da Rússia, em 2018. Isto confere ao conjunto um alto grau de qualidade e precisão. As jogadas saem perfeitas, como por música.
Mbappé voltou a jogar de forma discreta, quieto naquela faixa esquerda do ataque. Ocorre que, quando ele desperta, os inimigos precisam se cuidar. Foi assim quando pegou na bola dentro da área, deixou três marcadores para trás e deu assistência perfeita para Kolo Muani apenas desviar para o fundo do barbante, sem chances para o excelente Bono.
Um belíssimo gol pela construção da jogada, recheada de engenho e arte, através dos pés de um dos astros do Mundial. Mbappé e Messi são os donos desta Copa e nada mais justo que ambos tenham chegado à grande final, marcada para domingo.
A Marrocos resta o consolo de ter sido a sensação da Copa, título que ninguém lhe tira mais. Foi o time que incendiou a competição por traçar uma linha em ziguezague, derrubando a Península Ibérica (Espanha e Portugal) como a se vingar de opressões históricas.
O time cumpriu um papel admirável ao se inserir entre as potências do futebol. Um penetra no banquete dos bacanas. Empurrado por milhares de vozes, dentro e fora de Al Bayt, o esforço da equipe foi comovente. Em alguns momentos, ficou clara a inexperiência em jogos de grande porte. Algumas decisões erradas no momento de finalizar e erros bobos de marcação, mas tudo isso é parte do aprendizado.
Já a França de Deschamps fez o que lhe cabia diante de um adversário absolutamente imprevisível. Controlou o jogo no meio e usou sua arma mais poderosa: as bolas esticadas para os “externos desequilibrantes”, como diria Tite. Em lances puxados pelos lados, desmontou o forte sistema de proteção de Marrocos.

Soube sofrer nos 15 minutos finais do primeiro tempo e teve humildade para entender que o azarão era perigoso. No fim das contas, a jogada mais linda da noite levou a assinatura do craque. Mbappé, com desenvoltura e ginga de um brasileiro, driblou três e garantiu o gol tranquilizador.
É preciso reconhecer, porém, que o 2 a 0 não reflete a dureza que foi a partida para os campeões do mundo.
(Mbappé protagonizou uma das cenas mais marcantes do Mundial: vestiu a camisa da seleção africana na comemoração dos franceses ainda em campo, após o apito final no estádio Al Bayt. O gesto não foi à toa. O uniforme que Mbappé usou é do lateral-direito Hakimi, companheiro de PSG e um dos melhores amigos do camisa 10 da França. Antes de se enfrentarem pela semifinal, eles vinham interagindo e comemorando as conquistas um do outro nas redes sociais.)
Uma final que vai lembrar o nosso Re-Pa
Domingo tem Re-Pa aqui no Qatar. O azul marinho da França contra o alviceleste da Argentina. Mbappé x Messi. Rivalidades em cena. Lusail vai estremecer. Um tricampeonato em jogo.
É preciso agradecer aos azarões da grande festa
A Copa do Mundo do Qatar pode não ser um primor de técnica e inovação tática, mas captura pela emoção. Jogos disputadíssimos transformam azarões em times competitivos. Destaque maior, nesse aspecto, para a brava seleção de Marrocos, mas outros times marcaram presença, superando favoritos ao título.
Arábia Saudita, Senegal, Coreia do Sul, Camarões e Japão também fizeram das suas. Nunca uma Copa teve tantos resultados inusitados. Bolões devem ter pago uma grana mundo afora. Foram zebras que ajudaram a moldar um desfecho empolgante.
É preciso agradecer a todos esses times. Sem eles, a Copa do Qatar seria burocrática e previsível. A presença deles, com seus gols improváveis, entortou a régua e garantiu o divertimento.
Não lembro de outro Mundial tão marcado por resultados zebrados, talvez só o de 1982, na Espanha. O certo é que ninguém pode alegar tédio na disputa vista aqui. Cada jogo era um convite ao inesperado. O futebol precisa de mais surpresas generosas como as que baixaram no Qatar.
(Coluna publicada na edição desta quinta~feira, 15)