Milton Hatoum se tornou nesta quinta-feira (8) o terceiro escritor brasileiro a ser contemplado com o prêmio Roger Caillois pelo conjunto de sua obra. A premiação, que é anual, celebra tradicionalmente um autor latino-americano e um de língua francesa. Roger Caillois (1913-1978), célebre crítico literário, ensaísta, poeta e sociólogo francês, foi um dos mais importantes promotores da literatura hispano-americana na França, desde que se exilou na Argentina, durante a Segunda Guerra Mundial. A entrega do prêmio acontecerá no dia 13 de dezembro, na Maison de L’Amérique Latine, em Paris. Milton Hatoum, que estará presente, disse que “é um bom momento para sair um pouco do Brasil”. O escritor amazonense conversou com a RFI sobre a premiação, literatura e os últimos acontecimentos no país.
RFI – Você é o terceiro brasileiro a ser contemplado com o prêmio Roger Caillois, depois de Haroldo de Campos, em 1999, e Chico Buarque, em 2016. Qual o significado desta premiação para você, que possui várias obras traduzidas e publicadas na França?
Milton Hatoum – Fiquei muito honrado, é um prêmio importante para a literatura da América Latina. Ele leva o nome de um francês [Roger Caillois] que morou na Argentina vários anos durante a Segunda Guerra, onde fundou uma revista importante, a Lettre Française. Ele tinha sido convidado pela escritora argentina Victoria Ocampo para dar uma série de conferências na Argentina, e teve que ficar por lá por causa da ocupação nazista do governo de Vichy e de Pétain, na França. Quando ele decide ficar em Buenos Aires, ele começa a ler literatura hispano-americana. Além da produção literária de Caillois, ele foi um intelectual importante para fazer essa ponte cultural e afetiva entre a América Latina e a França. Vejo um pouco de paralelismo com a missão francesa no Brasil, com os franceses que vieram dar aula na USP nos anos 1930, entre eles o (Claude) Lévy-Strauss. O fato de ganhar esse prêmio, e de ter dois ilustres conterrâneos como vencedores, o Haroldo e o Chico Buarque, é uma honra para mim.
RFI – Seu mais recente livro, ‘A noite da espera’, que faz parte da trilogia O Lugar mais Sombrio, foi publicado há exatamente um ano no Brasil. É um romance de formação, que recupera um pouco do espectro sombrio da ditadura. Como será o segundo volume, que saíra num Brasil prestes a reviver, talvez, alguns destes fantasmas?
Milton Hatoum – Comecei a escrever essa trilogia em 2007. Esse ano, eu revisei o segundo volume. Durante a revisão, eu percebi que o ambiente não é muito diferente do que está acontecendo hoje. Críticos, jornalistas e leitores já tinham feito esse comentário sobre o primeiro volume. Muitos acharam que a narrativa e o ambiente opressivo remetem ao que aconteceu no último ano, no Brasil. Mas eu não tinha pensado nisso. Quando escrevi, 2008, 2010, 2012, o Brasil estava na paz, em outra toada. Mas essas tragédias são cíclicas na América Latina. E relendo o segundo volume, eu percebi que esse lugar sombrio continua como espaço e tempo sombrio também. Porque estamos revivendo algo que já vi, eu que passei toda a minha juventude, e uma parte da vida adulta, sob a ditadura. Então, posso dizer que isso que está acontecendo está de algum modo no livro, embora não seja um romance político, nem um romance sobre a ditadura.
RFI – Você citou Roger Caillois, que se exilou na Argentina por causa da colaboração francesa com o nazismo. O general Pétain, um dos símbolos dessa colaboração, causou polêmica na França há dois dias, quando o presidente francês, Emmanuel Macron, decidiu homenageá-lo, durante o centenário do Primeira Guerra. Como é ser criador num país, o Brasil, que parece adotar uma postura revisionista em relação a seu passado?
Milton Hatoum – Li essa declaração infeliz do Macron, e espero que tenha sido uma gafe (risos). Mas no Brasil, o que o presidente eleito, o capitão reformado Jair Bolsonaro, falou sobre a ditadura não foi gafe, foi convicção. Ele elogiou a ditadura e torturadores. Bolsonaro é de fato uma figura sinistra e de extrema direita. Um escritor sente essa pressão, mas esse governo não vai me impedir de escrever. Acho que quem vai sentir profundamente são as pessoas muito pobres, os negros, os homossexuais, as mulheres, ele fez um discurso contra as minorias, muito contundente e ácido. Eu não torço pelo pior, mas a equipe dele é péssima, não têm nenhuma grandeza ética ou intelectual para governar o país. Pessoas já foram assassinadas e professores estão acuados por causa dessa loucura dessa Escola Sem Partido, que vai gerar um verdadeiro caos, se esse projeto for aprovado. Será a loucura da delação em sala de aula, essa coisa de filmar professores e gravar. Acho que a violência vai aumentar e as pessoas estão com medo. Mas medo é a última coisa que a gente deve sentir. Devemos atacar com argumentos toda essa impostura.
RFI – Você é escritor. Seria possível descrever ou imaginar Brasília (um dos cenários de A noite da espera) em 2019?
Milton Hatoum – Brasília em 2019 para mim será um governo de militares eleitos pelo povo. Não sabemos o que será o Congresso Nacional, como ele vai se comportar diante do Executivo. Eu estou prevendo uma situação um pouco caótica. Essa para mim é a imagem de Brasília no ano que vem. O Brasil é de uma complexidade enorme, e eles não entenderam isso. Acho que as pessoas estão muito infelizes, há 13 milhões de desempregados. Quem elege um salvador da pátria, não sabe ainda que não haverá salvação, nem a curto, nem a médio prazo. Acho que esse tempo sombrio vai ser longo.
“Chamam de louca a mulher. A mulher que desafia as regras e não se conforma. Chamam de louca a mulher cheia de erotismo, de vida e de tesão. Chamam de louca a mulher que resiste e não desiste. Chamam de louca a mulher que diz sim e que diz não. Não importa o que façamos, nos chamam de louca. Se levarmos a fama, vamos, sim, deitar na cama. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema de opressão. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino. Vamos jogar na fogueira as camisas de força da submissão, da tirania e da repressão. Vamos libertar todas nós e todos vocês. Nossa luta só está começando. Preparem-se, porque essa revolução não tem volta. Bora sabotar tudo isso?”
Ou o capitão reformado Jair Bolsonaro não esperava ganhar as eleições ou é um político irresponsável. Nesses primeiros dez dias após a vitória, o presidente eleito já deu suficientes demonstrações de total despreparo e de falta de um programa de governo.
Atirando balas perdidas para todo lado, Bolsonaro já deixou claro, para quem ainda tinha alguma dúvida, que não tem a menor ideia de como vai governar este país de 208 milhões de habitantes e 12,5 milhões de desempregados.
Se continuar nesta sucessão de trapalhadas, recuos, ditos e desditos, criando, fundindo e fechando ministérios, arrumando inimigos mundo afora, vai paralisar o governo federal logo após a sua posse.
Esta é a nua e crua verdade dos fatos. O resto é marketing de especulação e indústria de fake news, como se o eleito ainda estivesse em campanha, cercado por filhos, áulicos e meia dúzia de militares de pijama.
Em sua primeira incursão pelo poder em Brasília, parecia um homem assustado, desconfiado, olhando para os lados e para o alto, como se temesse novo atentado ou a chegada de um disco voador.
Revelou visível dificuldade e desconforto para responder a perguntas de jornalistas sobre qualquer assunto, simplesmente porque até agora não conseguiu definir prioridades e um programa mínimo de governo para os primeiros 100 dias.
Sobre o seu primeiro dia de governo, disparou logo cedo nesta quinta-feira um Twitter para anunciar que vai abrir a “caixa preta” do BNDES, um dos maiores bancos de desenvolvimento do mundo, criado há 52 anos por Getúlio Vargas.
O que ele quer com isso, desmoralizar o banco?
Na véspera, também pelo Twitter, decidiu fechar o Ministério do Trabalho, sem dizer o que fará com as secretarias setoriais que cuidam de emprego, proteção ao trabalhador, combate ao trabalho escravo, entre outras muitas atribuições, nem para onde irão seus funcionários de carreira.
Como se fosse um Trump tropical, dispara novas mensagens pelo Twitter para nomear ou desnomear ministros ou anunciar medidas no varejo do improviso, como mudar a embaixada em Israel para Jerusalém.
A troco de quê? O que o Brasil ganha com isso?
Entre um encontro e outro com ministros militares, o presidente da República e o do STF, o novo presidente soltou mais um nome para o seu ministério, o da Agricultura, apresentado como competente técnica do setor, uma agrônoma.
Na verdade, trata-se da deputada Teresa Cristina, do DEM, uma fazendeira do Mato Grosso do Sul, indicada pela Frente Parlamentar da Agropecuária, mais conhecida como bancada do boi ou ruralista, a maior do Congresso Nacional, que domina o Centrão.
Teresa Cristina também é conhecida na Câmara como “musa do veneno”, grande defensora da liberalização de agrotóxicos na agricultura, que esteve com Bolsonaro, semanas atrás, no bunker da Barra da Tijuca.
Não poderia ter escolhido ninguém melhor para sinalizar o que o novo governo pretende fazer nesta área. Para o Ministério do Meio Ambiente, que ele desistiu de juntar com a Agricultura, também promete nomear um “técnico”. Pode-se imaginar o que vem por aí.
Ofuscado pelos superministros Paulo Guedes e Sergio Moro, que não param de dar entrevistas, Bolsonaro tenta criar fatos novos para ocupar a mídia e as redes sociais, mas a cada intervenção só aumentam a barafunda à sua volta e as incertezas sobre o novo governo.
Até agora, ninguém sabe como vai ficar a Esplanada dos Ministérios, que vai precisar de muitos caminhões de mudanças, sem que até agora se saiba quanto o país irá economizar com os cortes de ministérios. De 15 inicialmente previstos, os sobreviventes já passaram para 18, por enquanto.
Nunca se viu tamanha balbúrdia numa transição de governo desde a redemocratização.
Até a data da diplomação do presidente eleito causou transtornos porque ele tem nova cirurgia do intestino marcada para o dia 12 de dezembro, em São Paulo. Acabou ficando para o dia 10, justamente a data em que se comemora a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tudo a ver.
Além dos problemas internos que já criou para a futura governabilidade, nestes poucos dias, Bolsonaro produziu atritos com China, Venezuela, Cuba, países árabes, Brics e Mercosul.
E, com tudo isso, continua a campanha de pra frente Brasil, agora vai, nas redes sociais, acusando de pessimistas vermelhos quem não está torcendo para o governo dar certo “porque estamos todos no mesmo barco”. De que adianta torcer, se o barco é furado, o time é mambembe e o técnico parece mais perdido do que cachorro em dia de mudança?
Acreditem: a tragédia que se avizinha do dia do jogo para valer é tamanha que já tem muita gente embarcando no “Fica, Temer!”. Pensando bem, dos males o menor. Esse, pelo menos, a gente já conhece.
O outro, que vai assumir, é uma bomba relógio prestes a explodir a qualquer momento, mais imprevisível do que a “caixa preta” do BNDES. Pelas primeiras amostras da nova ordem, a impressão que se tem é a de um bando de patos desarranjados perdidos no Planalto Central e na Barra da Tijuca em busca de abrigo.
Faltam apenas 54 dias para a posse. Melhor já apertar os cintos.
A Casa Branca suspendeu hoje a credencial do jornalista Jim Acosta, da rede CNN, após entrevista coletiva em que o presidente Donald Trump discutiu com o repórter. Acosta primeiro fez uma pergunta sobre a caravana de imigrantes da América Central que se locomove em direção aos EUA, ao que o presidente respondeu: “Sinceramente, acho que você deveria me deixar dirigir o país e você dirige a CNN. E se você fizesse isso direito, seu trabalho seria bem melhor”.
Trump então o impede de fazer a próxima pergunta, sobre a relação do presidente com a Rússia, e uma funcionária tenta tirar o microfone das mãos de Acosta. Trump chama o jornalista de “pessoa terrível” e diz que a CNN deveria se envergonhar de empregá-lo.
Para justificar a suspensão da credencial, a assessora de imprensa da Casa Branca, Sarah Huckabee Sanders, publicou um vídeo editado no Twitter, no qual Acosta afasta o braço da funcionária que tentou tirar o microfone de suas mãos. Jornalistas acusam o vídeo de ter sido modificado para parecer que o gesto de Acosta foi mais agressivo.
“Não vamos tolerar um repórter colocando as mãos em uma jovem mulher que estava apenas tentando fazer o seu trabalho como estagiária da Casa Branca”, escreveu Sanders.
O demagogo Trump é guru de uma certa corrente política em alta no Brasil. Esperemos coisa pior por aqui.
O Corinthians foi notificado oficialmente na tarde dessa quinta-feira sobre a penhora da taça do Mundial de Clubes de 2012 por causa de uma dívida de R$ 2,48 milhões com o Instituto Santanense de Ensino Superior. O processo é movido desde 2008 e as partes negociavam um acordo, tudo até o pedido de penhora. O Corinthians agora garante que vai pagar e acabar com o problema.
“Pelo menos temos duas (taças de Mundial) para penhorar. Temos terreno, ônibus, carro, preferiram a taça do Mundial. Estamos num processo desde 2005 (na verdade 2008), tínhamos uma parceria lá no Parque São Jorge, anos depois teve um rompimento, os dois entraram na justiça, a faculdade tem a receber, o Corinthians também tem, estávamos negociando e estava bem adiantado, mas, infelizmente, os advogados fizeram um ato midiático. Vamos resolver em 48 horas. É uma ação midiática”, disse o presidente corintiano, Andrés Sanchez, em entrevista coletiva no CT Joaquim Grava.
“Quanto vale a taça no valor financeiro? Mas é direito deles, justiça é para isso. Temos 48 horas para resolver e vamos resolver”, reiterou, sem esconder sua irritação com a situação. A faculdade já havia tentado bloquear parte do prêmio que o Corinthians tinha a receber da CBF pelo vice-campeonato da Copa do Brasil. A ação não deu certo, pois os R$ 20 milhões caíram na conta alvinegra antes da atitude da universidade.
Há tempos, antes da eleição de Bolsonaro, falava com juízes brasileiros sobre a Operação Lava Jato, o juiz Sérgio Moro e a perigosa exposição do judiciário a dúvidas sobre a condenação do ex-Presidente Lula. Era evidente o desconforto desses juízes com as atitudes de Moro, não na condução do processo – aí todos me afiançaram que é um juiz competente e íntegro – mas no excessivo protagonismo que o fez andar pelo mundo fora a falar do caso. Qualquer pessoa sabe que isso é errado. Quanto mais atenção pública há sobre o caso, mais o juiz deve estar calado.
A ida de Moro para o governo do Brasil é errada sob todos os pontos de vista. É errada para Bolsonaro porque não podia ter dito em campanha que Lula vai apodrecer na cadeia e depois levar para ministro o juiz que o prendeu e condenou. É errada para Moro porque justificar esse ato como uma forma de dar continuidade à sua militância anticorrupção é inaceitável – a única causa em que os juízes podem militar é a da Justiça e da Lei. E é errada para o sistema político porque uma democracia não pode viver sob a suspeita de ter havido interferência ilegítima dos tribunais numa eleição presidencial.
O que acabo de dizer não envolve nenhum juízo de valor sobre a eleição de Bolsonaro nem sobre as suas qualidades para ser presidente e muito menos sobre a culpabilidade de Lula. Como juiz, o que me interessa relevar é o dano causado na imagem de imparcialidade da justiça e no princípio da separação de poderes, precisamente no momento em que esses valores deviam ser mais protegidos, quando a ação dos tribunais incide sobre pessoas que exercem cargos políticos.
Em Portugal não há memória de tamanha promiscuidade. Meneres Pimentel só foi nomeado juiz do Supremo Tribunal de Justiça anos depois de ter sido ministro da justiça e da reforma administrativa. Laborinho Lúcio tinha sido juiz e procurador, mas quando foi para ministro da justiça estava há muitos anos afastado dos tribunais. Fernando Negrão cessou a carreira de juiz para ir para a política. A atual ministra da justiça, Francisca Van Dunem, fez a sua carreira toda no Ministério Público e acabou por tomar posse como juíza do Supremo Tribunal de Justiça quando já estava em funções no governo. Há, além disso, uma tradição de presença de juízes noutras funções governamentais, nomeadamente como secretários de estado, diretores-gerais, chefes de gabinete, assessores e adjuntos.
Nenhuma destas situações é comparável com a de Moro no Brasil. Nenhum juiz foi para um governo depois de ter proferido decisões em processos de tanta relevância e atualidade política. E não acredito que um caso desses pudesse acontecer em Portugal. Nenhum político ousaria convidar para ministro um juiz que tivesse acabado de prender um candidato numa eleição presidencial; nem alguma vez um juiz se atreveria a ir para ministro nessas circunstâncias.
Mas a verdade é que a lei não proíbe isso, como devia. O Estatuto dos Magistrados Judiciais em vigor permite que juízes ocupem cargos políticos no Governo, mediante autorização do Conselho Superior da Magistratura, que em regra é concedida. Mais grave ainda, no Estatuto que está neste momento em revisão, prevê-se que o exercício de funções como membro do Governo no Ministério da Justiça passe até a ser equiparado a outras funções exercidas por juízes em comissões de serviço de natureza judicial, como, por exemplo, as de juiz presidente de tribunal ou de inspetor judicial. Esta solução não tem pés nem cabeça. Não tem o mínimo sentido equiparar funções típicas de juiz, exercidas no quadro da orgânica judiciária, com funções iminentemente políticas, exercidas num quadro de subordinação e confiança partidária.
Os juízes reprovam essa possibilidade. O Compromisso Ético que aprovaram em 2008 diz o seguinte: “o juiz, para preservar a sua independência e imparcialidade, rejeita a participação em atividades políticas ou administrativas que impliquem subordinação a outros órgãos de soberania ou o estabelecimento de relações de confiança política”. Isto é que está certo. Quanto menos confusão houver entre política e justiça, melhor para a sistema político democrático e melhor para o cidadão.
(*) Presidente da direção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses
Como observa nosso colunista André Araújo, Bolsonaro tem perfil muito mais próximo de Hugo Chávez do que de Donald Trump, começando pela raiz militar de nível médio de ambos. Trump nasceu na mais alta elite imobiliária de Nova York, nunca foi deputado, seu mundo e ambiente nada tem a ver com o de Bolsonaro. Além disso, os EUA, com 242 anos de instituições, jamais viveram sequer tentativas de aventura ditatorial. Trata-se de contexto completamente diferente do Brasil e Venezuela, onde as instituições são bem menos sólidas e o histórico político permite aventuras de todos os tipos.
Países latinos se parecem, e o Brasil já viveu duas ditaduras completas, a do Estado Novo e a de 1964. O mesmo ocorreu na Venezuela, com as ditaduras de Juan Vicente Gomez e a do Coronel Marlos Perez Gimenez. Em comum com Trump, haverá a guerra diuturna com a mídia.
Peça 2 – O fator Moro
Dentro do realinhamento de forças, pós-eleição, há uma tendência nítida de jornalistas de direita e de veículos, como a Globo, de fortalecer a aliança criada com a Lava Jato e apostar em Moro. Os idiotas da objetividade alegam que em 2014, quando começou a Lava Jato e a perseguição ao PT, Moro não poderia prever que Bolsonaro seria um dia presidente e o convidaria para Ministro.
Trata-se de um truque narrativo. Moro não podia prever Bolsonaro, mas é evidente que estava construindo um capital político para ser usado mais a frente e, por óbvio, só no campo anti-petista. Moro não iria largar a toga de repente se já não estivesse com um plano previamente articulado de seguir carreira politica, assim como na Itália com a turma das “Mãos Limpas”.
Agora Moro pede férias e não demissão, para que tenha certeza de que Bolsonaro entregará toda a amplitude de poder que impõe. É jogo pesado. Se não conseguir o que quer volta ao cargo de juiz no fim de dezembro. Moro é especialista no “parece, mas não é”.
Peça 3 – A repressão
Em sua primeira coletiva, Sérgio Moro rebateu desconfianças de que agiria politicamente. Ele apenas vai seguir o que ele próprio interpreta como lei, sem essas limitações chatas impostas pela Constituição e pelo Código Penal. Ontem, deu um exemplo maiúsculo: caixa 2 dos inimigos merece condenação; dos amigos, como o deputado Onix Lorenzetti, exige apenas um sinal de arrependimento.
Não precisa sabe ler nas entrelinhas para identificar o estado policial anunciado por Moro. Consistirá em espalhar forças tarefas por todo o país, com ele tendo debaixo de si a Controladoria Geral da República (CGU), o COAF (Conselho de Controle de Atividade Financeira), o sistema de informações montados pelo GSI (Gabinete de Segurança Institucional).
Para invadir a Universidade Federal de Santa Catarina, e levar o reitor ao suicídio, bastou um relatório da CGU indicando irregularidades pequenas e a certeza de impunidade por parte de uma delegada da Polícia Federal e de uma juíza federal. Dia desses, a UFABC (Universidade Federal do ABC) foi intimada a enviar para o Tribunal de Contas da União o modelo pedagógico de um curso para sem-terra (que não envolvia nenhum recurso público) para que fosse analisado pelos técnicos.
Ou seja, o estado policial já existe, com os órgãos de controle agindo politicamente e o Judiciário endossando, na maioria das vezes, qualquer acusação contra os ´inimigos´, ao arrepio da Constituição e dos direitos civis.
Um Ministro efetivamente legalista pediria moderação aos juízes, procuradores, e funcionários de órgãos de controle. Moro decide assumir o comando das tropas. Com ele, esse movimento difuso será institucionalizado e nacionalizado dentro do melhor receituário de polícia política. Nenhum inimigo político será enquadrado em crime político, mas denunciado, processo e condenado por qualquer álibi administrativo.
Peça 4 – O jogo político
A quantidade de asneiras vazadas do exército de Bolsoleone é recordista. A última é a proposta de fusão do Banco do Brasil com o Bank of America para aumentar a competição bancária. Nem se fale da impropriedade da proposta, mas do álibi de aumentar a concorrência fortalecendo e desnacionalizando o maior banco brasileiro. Falta know how para legitimar as tentativas de negociatas. Ou a proposta de quebra do sigilo das operações do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), confundindo sigilo bancário com sigilo das operações. Tudo isso fruto da enorme desinformação plantada pela mídia e pelo Ministério Público nos tempos de preparativos do golpe do impeachment.
Hoje em dia, qualquer asneira, mesmo sem fundamento, é propagada pela mídia brasiliense, ajudando a ampliar a balbúrdia informativa do país. Bolsonaro tem atuado ora como um bombeiro mambembe ora como incendiário. Vez por outra, despeja declarações de apreço à democracia, que soam mais inverossímeis que as declarações de Moro em defesa da legalidade.
Mesmo assim, não consegue disfarçar suas idiossincrasias em relação à imprensa mainstream – Folha e veículos da Globo -, e nem em relação ao Ministério Público Federal, conforme demonstrou na atitude grosseira de não cumprimentar a procuradora geral da República Raquel Dodge no ato de comemoração dos 30 anos da Constituição. Peça central do punitivismo cego que levou Bolsonaro ao poder, o papel da PGR e do MPF foi parcialmente reabilitado pelo discurso corajoso de Raquel Dodge no evento.
Não se tenha dúvida de que, mesmo antes do início de governo, Moro já assume o papel de polo principal do governo, apoiado por todos aqueles que temem as idiossincrasias de Bolsonaro e pretendem manter a aliança em torno do delenda PT. Aliás, é admirável a maneira como as Organizações Globo conseguem uniformizar a opinião de seus colunistas. Há mais disciplina por lá que nas Forças Armadas.
Peça 5 – O confronto
Nas entrevistas que concede, Bolsonaro mostra-se inseguro, titubeante, conhecendo suas próprias limitações. Diz asneiras e volta atrás, apaga incêndios provocados por assessores, corrige suas próprias impropriedades.
Tratam-se de vacilações iniciais de quem se vê exposto à cobertura diária sem um plano de voo. As bandeiras principais continuam de pé: devastação da Amazônia, ataques aos avanços sociais, liquidação dos movimentos sociais e dos sindicatos.
Ontem mesmo, na Câmara Federal, APAEs (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e escolas sem partido tentavam avançar em todas as frentes. Para voltar a controlar as verbas públicas destinadas à educação inclusiva, representantes das APAEs sustentavam que a política atual (em que os recursos ficam nas escolas federais) foi feita por ´corruptos´, mostrando como o álibi da corrupção é utilizado para se apropriar dos recursos públicos.
Agora é aguardar os próximos passos e esperar algumas luzes de racionalidade em um momento em que a besta se apropriou da opinião pública e do próprio Congresso, onde o baixo clero, pela primeira vez, assumiu o comando.
Servidores do Ministério do Trabalho interditaram, nesta quarta-feira (8), o trânsito da Esplanada dos Ministérios no sentido rodoviária-Congresso. O protesto durou cerca de 10 minutos, mas atrapalhou o fluxo de veículos na área central de Brasília.
O ato foi motivado pelo anúncio do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), de que a pasta perderá status de ministério a partir de 2019. Nesta quarta, Bolsonaro declarou que pretende incorporar o órgão, criado há 88 anos, “a algum ministério”.
Até as 15h30, não havia registro de conflito no local, e nem estimativa de público divulgada pelos organizadores ou pela Polícia Militar. Neste mesmo horário, o Ministério do Trabalho ainda não tinha se manifestado sobre o protesto.
O ato começou às 15h, com um abraço coletivo à sede do ministério, às margens do Eixo Monumental. Neste momento, o protesto não chegou a impactar o trânsito ou o acesso de pessoas ao edifício.
Por volta das 15h20, no entanto, o grupo foi para o asfalto e interditou as seis faixas da via, bloqueando o acesso de veículos ao Congresso Nacional e a outros prédios ministeriais. Equipes do Detran foram acionadas, mas a via foi liberada sem resistência dos manifestantes. (Do G1)
Ninguém se iluda com o vaivém da fusão ou não do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. É jogo de cena. Bolsonaro pode fingir que é democrata e ouviu a população, especialistas e o suposto agronegócio moderno, fingir que recuou porque escuta, mas o fato é que já está tudo decidido. Não é necessário fundir os ministérios para fazer o serviço sujo de abrir ainda mais a Amazônia para a exploração. Se concluir que é mais conveniente manter o ministério, basta escolher um ministro identificado com o projeto de comercializar a floresta. Quando o populista de extrema direita que, na prática, já governa o Brasil desde 29 de outubro, diz que botará alguém “sem o caráter xiita” à frente da gestão ambiental, é isso que está dizendo.
Bolsonaro pode apregoar que não tem compromisso com nenhum partido, mas esta é apenas mais uma bravata. Os fatos mostram que ele deve bastante do sucesso de sua candidatura a dois grandes “partidos” não formais e poderosos, com atuação fora e dentro do Congresso: os ruralistas e os evangélicos. Essa conta ele vai ter que pagar. E, dado o seu perfil, vai pagar com gosto. A conta dos ruralistas é a Amazônia. E o que ainda resta do Cerrado.
Alguém se ilude que um homem com a biografia do megaprodutor de soja Blairo Maggi, ganhador do troféu “motosserra de ouro”, quando se opõe à fusão dos ministérios é por amor ao meio ambiente? Ele apenas sabe que é importante manter minimamente as aparências lá fora enquanto a bandalheira corres solta aqui dentro. E sabe também que não é necessário fundir para dominar. Antes mesmo de ser ministro ele já demonstrou ter larga experiência no assunto. O setor do agronegócio que compreende a importância do combate ao aquecimento global para a agropecuária e o comércio internacional é muito menos influente no Brasil do que o agrobanditismo que está no poder.
O problema, e este é um enorme problema, é que todos pagaremos muito caro pela operação na Amazônia que Bolsonaro e seus articuladores já anunciaram de várias maneiras. Muitos com a vida. E não apenas a vida dos que morrem à bala, mas a vida dos que morrerão pelos efeitos da mudança climática. Há algumas coisas que quem ainda não entendeu precisa entender agora, já, se não quiser continuar fazendo papel de bobo.
As terras dos indígenas são terras públicas, de domínio da União. São minhas, são suas, são do país. Os indígenas, segundo a Constituição de 1988, que é a constituição da democracia, têm apenas o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais. Podem viver nelas e delas, sem destruí-las, mas não podem fazer negócio com elas. Estas terras não são, portanto, mercadoria. Este é o ponto.
Tudo indica que a principal meta do governo de Bolsonaro, ou a principal razão de ter um Bolsonaro à frente do Brasil, é transformar a floresta amazônica em mercadoria. Este é o trabalho prioritário de Bolsonaro para uma parcela poderosa dos articuladores de sua candidatura. Por uma razão bastante objetiva: é na Amazônia que está o estoque de terras supostamente ainda disponíveis no Brasil, para o avanço da pecuária e da soja, e é também na floresta que estão as grandes jazidas minerais.
Basta acompanhar os números da agropecuária, especialmente a partir dos anos 90, para constatar como tem crescido a importância da região amazônica para o gado e para a soja. Só de bois já são 85 milhões, três bois para cada humano. Também basta checar o congestionamento de pedidos de licenças de mineração na floresta. A Amazônia é a região do Brasil onde o capitalismo ainda vê espaço para a exploração predatória num país que vem sendo dilapidado desde as capitanias hereditárias. Enquanto Bolsonaro e seus estrategistas criam jogos de cena e fogos de artifício em outras áreas, é na floresta que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados.
Os indígenas têm sido tratados como “entraves para o progresso” – ou para “o desenvolvimento” – há vários governos, inclusive os do PT. Porque os indígenas são de fato “entraves”. Mas entraves para a destruição da Amazônia. De novo, basta olhar os mapas e os números. É nas terras indígenas, seguidas pelas unidades de conservação, onde a floresta está mais preservada. Como o direito ao usufruto das terras ancestrais é garantido pela Constituição, os indígenas são os principais entraves para a conversão da floresta em mercadoria.
Há uma mudança recente na estratégia de desqualificação dos indígenas. Em anos anteriores, a campanha que buscava tirar a legitimidade do seu direito às terras ancestrais concentrava-se em convencer a população que: 1) os indígenas teriam terras demais; 2) uma parcela dos indígenas seria composta por falsos indígenas ou, como chegaram as ser chamados, “indígenas paraguaios”. Ser índio e usar celular ou uma camiseta da seleção brasileira era propagandeado como incompatível por aqueles que querem botar a mão em suas terras. Os indígenas eram tratados como uma espécie de estrangeiros nativos, uma contradição em si, mas vista como normal por uma parcela dos brasileiros.
Bolsonaro tem uma expressão estúpida, claramente não é um leitor assíduo, os olhos perseguem cursos erráticos quando fala, mas ele não é burro. Ninguém passa 28 anos no Congresso e mesmo assim consegue se vender como “não político” e “antissistema” e se eleger presidente, sem alguma inteligência. Talvez aqueles do seu círculo que pensam manipulá-lo facilmente terão alguma surpresa. Mais espertos ainda são aqueles que estão ao redor dele, dentro e fora do país, sustentando seu projeto autoritário.
Essa esperteza marca a mudança de tática de Bolsonaro com relação aos indígenas durante a campanha e também após eleito. O discurso passa a ser o de que “o índio é um ser humano como nós”. O que é óbvio e que jamais precisaria ser dito não houvesse uma intenção oculta. Segundo Bolsonaro, o indígena quer “empreender”, quer “evoluir”. O que significa isso? Significa, como Bolsonaro já explicou, que os indígenas deveriam ter o direito de vender e arrendar a terra, algo que está em curso no Governo e no Congresso há bastante tempo.
Os indígenas supostamente gostariam de ser como os brancos. Mas ser como brancos em qual sentido? No sentido de poderem tornar a terra mercadoria, uma característica intrínseca “dos brancos”. E então a terra pode ser vendida e aberta à exploração. “Evoluir” e “empreender”, no entendimento de Bolsonaro, é dar à floresta o mesmo status que um carro, uma mesa, um celular ou um pirulito. Mas, atenção. O presidente eleito também diz: “Os índios não querem ser latifundiários”.
Não é difícil adivinhar quem vai comprar as terras ou explorar suas riquezas. É bastante esperto o discurso de “ser humano como nós”, que converte o que é sequestro das terras dos indígenas em um “direito” dos indígenas a poderem fazer o que querem com elas, inclusive e principalmente vendê-las, arrendá-las ou abri-las para exploração. Assim, o que hoje é terra pública – minha, sua, do país – passaria para a mão privada de poucos.
Esse projeto de usurpação das terras da União tem avançado de várias maneiras ao longo dos últimos anos, inclusive com o apoio de setores do PT. O governo de Dilma Rousseff já tinha intensificado a aproximação com os ruralistas iniciada no governo de Lula. Figuras como Kátia Abreu e Gleisi Hoffmann foram decisivas para o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não é permitido esquecer que, até 2016, quando foi afastada por um impeachment sem fundamento, Dilma foi a presidente que menos tinha demarcado terras indígenas.
Já com os quilombolas, povos muito mais frágeis que os indígenas, a estratégia empregada para avançar sobre as suas terras ainda é a antiga. Por que Bolsonaro falaria tanto em quilombo e quilombolas durante a campanha? Porque um de seus serviços no poder é botar a mão nas terras a que os descendentes de escravos rebelados têm direito constitucional.
Como as terras dos indígenas, as dos quilombolas já deveriam estar demarcadas, mas há uma grande parcela que ainda não está. Como o Brasil é um país estruturalmente racista e, nos últimos anos, o protagonismo negro alcançado com medidas como as cotas raciais nas universidades incomodou muitos dos potenciais eleitores de Bolsonaro, desqualificar os quilombolas se revelou um caminho mais fácil. Sem contar que os quilombolas têm muito menos expressão internacional e ecos no imaginário do que os indígenas.
Quando Bolsonaro escolhe contar sobre uma visita a um quilombo na palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, não é algo que surge do nada na sua cabeça, como parece à primeira vista. Ele está calculando. Quando ele diz que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, seguida por “nem para procriar servem mais”, ele não está sendo apenas o racista habitual. Ele está calculando. E atingindo o alvo, preparando-se para “legitimar” para a opinião pública a futura retirada de direitos dos quilombolas às suas terras.
Depois de ter sido denunciado por racismo, Bolsonaro mudou de tática e uniformizou o discurso: “Eles (os quilombolas) querem ser libertos. (…) Acho até que se quiser vender aquela área quilombola, que venda, opinião minha. Se quiser explorar, tirar minério, ter maquinário, a exemplo do seu irmão fazendeiro do lado…”. É fundamental prestar atenção na operação de linguagem para botar as mãos nas terras ancestrais: o indígena “é ser humano como nós”, o quilombola quer ser “liberto”. Para tornar-se humano como nós e ser liberto tem que ter o “direito” de vender as terras hoje protegidas. O complacente Supremo Tribunal Federal absolveu Bolsonaro da denúncia de racismo pouco antes da eleição.
O discurso da “indolência” e da “malandragem”, associado a indígenas e negros, também aventado por seu vice, o general reformado Hamilton Mourão, é o capítulo anterior ao capítulo do “ser humano como nós”. Ambos estão no manual sobre como transformar terras públicas protegidas em terras privadas exploradas por poucos. O capítulo introdutório, como todos sabem, é o extermínio direto dos povos da floresta, seguido pelo dos negros. As três estratégias ainda convivem simultaneamente no Brasil, como os números de assassinados mostram. Mas, no mundo globalizado, é sempre melhor evitar o sangue e eliminar os corpos de uma maneira mais “limpa”.
E esta maneira será tentada primeiro dentro da lei, também no governo populista de extrema direita de Bolsonaro. Esta é uma característica dos governos autoritários que estão sendo produzidos dentro da democracia. Basta olhar para outros casos do mundo.
Bolsonaro vai intensificar e acelerar o que já vinha acontecendo nos últimos anos. O “novo” Código Florestal, um tremendo retrocesso na proteção do meio ambiente, é um exemplo. Mas talvez o exemplo mais cristalino seja o daquela que foi chamada de “Lei da Grilagem”.
Grilagem, como se sabe, é o roubo de grandes porções de terras públicas. Houve casos de “grilos” maiores do que países da Europa na floresta amazônica. Por muito tempo, a grilagem foi feita na base da pistolagem. Ainda é. Mas também vem sendo feita na base da lei. Em julho de 2017, Michel Temer (MDB) sancionou uma lei “regularizando” terras públicas que foram tomadas até 2011 no limite de 2.500 hectares, o equivalente a 57 Vaticanos. Bastava expandir a produção de “laranjas”, legalizando de 2.500 em 2.500 hectares, para tornar legal o roubo de enormes porções de floresta.
Esta foi a “Lei da Grilagem número 2”. A “Lei da Grilagem número 1” é de 2009, ainda no governo Lula (PT), quando foram “regularizadas” terras públicas ocupadas até 2004, no limite de 1.500 hectares. Ou seja: a “lei” foi só melhorando para os ladrões de terras públicas. Em seguida, eles passam a ser chamados de “fazendeiros”, “desbravadores” ou representantes do “agronegócio”. São duas as operações: uma no plano da lei, outra no plano da linguagem. “Regularizar”, em vez de “legalizar”, arranca pela linguagem o caráter criminoso da operação de grilagem, responsável pelo maior número de mortes no campo e na floresta.
É também por esse caminho que a Amazônia vem sendo destruída. Assim como não foi o PT que inventou a corrupção no Brasil, também não será Bolsonaro que inventará a legalização do crime de grilagem. Essa operação já vem acontecendo há muito, se acelerou enormemente no governo Temer e deverá ganhar proporções inéditas no governo de Bolsonaro. Tudo dentro da lei. A princípio. E enquanto for possível. O judiciário já deu provas contundentes de que não é capaz – e em muitos casos não deseja – barrar essa operação de legalização do crime.
Para botar a mão na terra ancestral dos indígenas, porém, é mais complicado. O agrobanditismo vem atacando por vários flancos. Um deles é o que chamam de “marco temporal”. Sempre colocam um nome esquisito, que pouco diz para a maioria, para confundir a população. Por esse instrumento, só teriam direito às suas terras os povos indígenas que estavam sobre elas em 1988, quando a Constituição foi promulgada.
Para ficar mais fácil de entender, é mais ou menos o seguinte: você foi expulso da sua casa por pistoleiros ou por projetos do Estado. Era, portanto, fugir ou morrer. Mas você perde o direito de voltar para a sua casa porque não estava lá naquela data. Não é só estapafúrdio. É perverso. Mas esta é uma maneira “legal” de consumar algo criminoso. E assim impedir a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas.
Bolsonaro já declarou que não vai “demarcar nem um centímetro a mais de terras indígenas”. A aprovação da tese do “marco temporal” é só uma das maneiras e depende do Supremo Tribunal Federal, este que o filho do presidente eleito disse que “basta um cabo e um soldado para fechar”. Talvez nem isso, já que o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, já se submete ao autoritarismo por gosto pessoal, como quando fraudou a história ao dizer que o período de 21 anos de regime de exceção no Brasil não foi ditadura, mas um “movimento”.
Na segunda-feira, na mesma entrevista para a TV Bandeirantes, Bolsonaro reafirmou suas intenções e deixou claro com qual parte da população tem compromisso: “Afinal de contas, temos uma área mais que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento, via portaria, que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”. O presidente eleito tenta vender a falsa ideia de que as terras indígenas é que são “novas” e que o fazendeiro, que já as ocupou sabendo disso, é “surpreendido” pela notícia. Sem contar que o processo de demarcação é longo e criterioso, impossível de representar qualquer surpresa para quem invadiu terras indígenas ou foi lá colocado por projetos de governos passados.
A aprovação do marco temporal ajudaria a evitar novas demarcações de terras, mas não resolveria o problema das terras já demarcadas. Para abrir a Amazônia para a exploração do agronegócio e da mineração, além de estradas, ferrovias, pontes e hidrelétricas, Bolsonaro vai ter que mudar a Constituição de uma forma mais radical. Por isso o general Mourão, sempre falando na hora errada, já antecipou em setembro uma “nova Constituição”, feita por uma “comissão de notáveis”. Uma Constituição sem povo, portanto.
Como a declaração produziu mal-estar, Bolsonaro, notável por sua delicadeza de linguagem e de gestos, afirmou que “faltou um pouco de tato” ao seu general. O que significa isso? Que não era hora de mencionar a intenção. Nem era a forma de sugeri-la. Se não conseguir mudar a Constituição ou fazer uma nova Constituição, sempre há o que o mesmo Mourão já antecipou: a possibilidade de um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.
Alguns indicativos sobre o que está em curso. Em pesquisa recente, a antropóloga Ana Carolina Barbosa de Lima e os biólogos Adriana Paese e Ricardo Bonfim Machado mostraram que os municípios amazônicos que mais desmataram desde 2000 teriam elegido Bolsonaro já no primeiro turno. Nos municípios bolsonaristas, a média do desmatamento foi duas vezes e meia maior do que nos municípios que preferiram Fernando Haddad (PT).
Segundo o Observatório do Clima, dados do Deter B, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que monitora a Amazônia em tempo quase real, a taxa de desmatamento subiu 36% entre junho e setembro, período da pré-campanha e campanha eleitoral.
Na Amazônia, fazendeiros e grileiros já apoiavam Bolsonaro quando a maior parte dos brasileiros ainda duvidava que ele seria capaz de vencer a eleição. Assim como muitos dos prefeitos do PSDB da região, que nunca cogitaram votar em Geraldo Alckmin. Também será interessante observar como Bolsonaro, que mesmo antes de assumir já está de namoro avançado com Donald Trump, vai lidar com os interesses da China, cada vez mais presente na floresta e uma das principais importadoras de soja do país.
É na Amazônia que vai se dar a disputa do governo de Bolsonaro. O Brasil já é o país mais mortal para defensores do meio ambiente, segundo a organização Global Witness, e o estado amazônico do Pará é o lugar mais letal do planeta. O “agronegócio” superou a mineração como causador das mortes. Todas as variáveis apontam que esta violência vai se multiplicar com Bolsonaro. Até o governo Temer o agrobanditismo estava no poder. Agora, ele será o poder. E com autorização para matar dada pelo próprio presidente, em suas várias manifestações durante a campanha.
A Amazônia pode parecer longe para a maioria dos brasileiros. Mas nada afetará mais o futuro próximo de todos do que o destino da floresta. No Brasil, a agropecuária e o desmatamento, ambos relacionados, são as principais fontes de gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global.
Em outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já alertaram que a humanidade tem apenas 12 anos para limitar o aquecimento da Terra em 1,5 graus Celsius. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Sem a maior floresta tropical do mundo em pé não será possível atingir essa meta. É por isso que Bolsonaro se tornou também uma ameaça para o planeta. Para enfrentar a crise climática e recuperar a floresta seria necessário um presidente com ideias opostas às de Bolsonaro.
Somente a Bacia do Xingu, segundo monitoramento do Instituto Socioambiental, teve 150 milhões de árvores derrubadas em 2018, e o ano ainda nem acabou. A floresta amazônica chega aos dias atuais já desmatada em cerca de 20%. Um estudo publicado no início deste ano na Science Advances, assinado por cientistas de renome internacional, o americano Thomas Lovejoy e o brasileiro Carlos Nobre, mostrou que a floresta alcançará um “ponto de inflexão” se o desmatamento alcançar entre 20% e 25%. A partir daí, a Amazônia sofreria mudanças irreversíveis, tornando-se uma região de vegetação esparsa e baixa biodiversidade.
Estamos muito perto deste ponto de não retorno. E Bolsonaro ainda nem assumiu oficialmente. Querendo ou não, gostando ou não, acreditando ou não, estamos todos implicados neste futuro bem próximo. Os sinais estão todos aí para quem é capaz de ver. Mas, se preferir não ver, também não vai adiantar nada. É rápido. É no tempo da sua vida e na da vida de seus filhos. E não é porque a gente finge que não existe que a crise climática vai deixar de existir.
Eleger Bolsonaro foi a pior ação para o Brasil e para o planeta. Mas está feito. A pergunta agora é: o que faremos para resistir ao que está por vir e proteger a floresta e com ela a nossa vida? A eleição de 2018 revelou algo duro, mas importante: os candidatos estavam aquém da população. Primeiro, Lula e o PT mostraram-se incapazes de articular uma candidatura de centro-esquerda que pudesse vencer o projeto autoritário. Depois, Ciro Gomes e Marina Silva provaram-se incapazes de subir no palanque do segundo turno para defender a democracia.
Mas as pessoas se moveram. Apesar da brutalidade de, mesmo assim, ter sido eleito um defensor da ditadura e da tortura, esta foi uma das campanhas mais bonitas da história recente. Poucas cenas são tão memoráveis quanto a de pessoas anônimas, sozinhas, que na tentativa de virar o voto para o projeto democrático, levantaram um cartaz no centro das cidades dizendo: “Vamos conversar?”.
É dessa força que precisamos agora para, unidos com indígenas, quilombolas e ribeirinhos, lutarmos pela Amazônia e pela vida de todos. Mesmo que os eleitores de Bolsonaro não sejam capazes de perceber, resistir ao projeto destruidor da floresta já anunciado pelo presidente de extrema direita é também lutar pela vida deles e de seus filhos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum