A descoberta de Garrincha

 

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POR NELSON RODRIGUES

E eis que, pela primeira vez, um “seu” Manuel é o meu personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de anedota, ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa. Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia* acabou nos três minutos iniciais. Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o “seu” Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais.

E notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o meu personagem não acredita em empate e se disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin.

garrincha_pAmigos: a desintegração da defesa russa começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: — “Isso não existe!”. E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de fato, domingo Garrincha não existiu. Foi para o público internacional uma experiência inédita.

Realmente, jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou melhor, um jogador começar a partida com um baile. Repito: — baile, sim, baile!E o que dramatiza o fato é que foi baile não contra um perna-de-pau, mas contra o time poderosíssimo da Rússia.

Só um Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jogado contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversário. Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu, vale mais do que toda a Comunidade Britânica. Com esse estado de alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os russos. Os outros brasileiros poderiam tremer. Ele não e jamais. Perante a platéia internacional, era quase um menino. Tinha essa humilhante sanidade mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de chumbo e que, em Pau Grande, na sua cordialidade indiscriminada, cumprimenta até cachorro. Antes de começar o jogo, o seu marcador havia de olhá-lo e comentar para si mesmo, em russo: “Esse não dá pra saída!”. E, com dois minutos e meio, tínhamos enfiado na Rússia duas bolas na trave e um gol. Aqui, em toda a extensão do território nacional, começávamos a desconfiar que é bom, que é gostoso ser brasileiro.

Está claro que não estou subestimando o peito dos outros jogadores brasileiros. Deus me livre. Por exemplo: cada gol de Vavá era um hino nacional. Na defesa, Bellini chutava até a bola. E quando, no segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile, foi um carnaval sublime. A coisa virou show de Grande Otelo. E tem razão um amigo que, ouvindo o rádio, ao meu lado, sopra-me: “Isso que o Garrincha está fazendo é pior do que xingar a mãe!”. Calculo que, a essa altura, as cinzas do czar haviam de estar humilhadíssimas. O marcador do “seu” Manuel já não era um: eram três. E, então, começou a se ouvir, aqui no Brasil, na praça da Bandeira, a gargalhada cósmica, tremenda, do público sueco. Cada vez que Garrincha passava por um, o público vinha abaixo. Mas não creiam que ele fizesse isso por mal. De modo algum. Garrincha estava ali com a mesma boa-fé inefável com que, em Pau Grande, vai chumbando as cambaxirras, os pardais. Via nos russos a inocência dos passarinhos. Sim: os adversários eram outros tantos passarinhos, desterrados de Pau Grande.

Calculo que, lá pelas tantas, os russos, na sua raiva obtusa e inofensiva, haviam de imaginar que o único meio de destruir Garrincha era caçá-lo a pauladas. De fato, domingo, só a pauladas e talvez nem isso, amigos, talvez nem assim.

Nelson Rodrigues, [Manchete Esportiva, 21/6/1958]

* Brasil 2 x 0 União Soviética, 15/6/1958, em Gotemburgo (Suécia). A URSS era apontada como o grande fantasma da Copa por seu “futebol científico”.

3 comentários em “A descoberta de Garrincha

  1. Relato alguma coisa que li sobre Garrinha. Um locutaor esportivo, depois de assistir seu bailado no Campo de Pau Grande, insistiu tanto, até levar Garrincha para o Flamengo. Meu time. De longe, o técnico, falou “pode voltar com ele, pois não contrato aleijado. Depois de meses tentando convencê-lo novamente, o levou ao Botafogo. O técnico disse. Apenas por apreciar e muito seu trabalho, vou pedir ao Didi, para marcar ele, por 10 minutos. Em jogo por quase 30 minutos, o narrador perguntou. Não eram 10 minutos? É que estou gostando dos raros tombos de Didi. Terminada a prova, indagou a Didi. O que você achou? No próximo treino quero jogar ao lado dele! Na Espanha, Garrincha, convidado a assistir a tourada, foi por considerar “ordem”, mas, comprou vários fogos, de modo a que todos os jogadores brasileiros portassem os fogos, na esperança de algum lance a favor do touro. Não deu outra. O touro derrubou o toureiro e a turma explodiu todos aqueles fogos, incompreendidos por todos! Envergonhado, o técnico, se não engano, Feola, perguntou. Porque os fogos? Sou a favor dos touros, disse garrincha.

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  2. Nelson Rodrigues, o Garrincha da crônica futebolística. Imagine se ele estivesse lá, in loco, assistindo a revelação do “Seu Manoel” para o mundo.

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