Parque de diversões

Por Joaquim Ferreira dos Santos

Histórias do tempo em que o politicamente correto não existia e que nas redações ganhava-se menos mas divertia-se mais.

Luiz Mário Gazanneo, o grande jornalista morto na semana passada, estava numa dessas redações antigas por onde eu passei e às quais de vez em quando volto para pegar uma lauda esquecida, fuçar uma história mal apurada, procurar um número de telefone no “seboso” ou explicar aos mais jovens como elas eram diferentes das salas de hoje. Na pausa entre o lead e o sublead, repórteres e redatores atiravam-se bolinhas de papel.

Parece cena de cursinho de “Malhação”, mas havia um repórter que de meia em meia hora reproduzia com perfeição, audível em todos os cantos da redação, o mugido de um boi. Ria-se, fechava-se a página com calhau e abria-se o texto com um nariz de cera pomposo. Nada a ver com esse seriado “Newsroom”, hoje na moda com seu discurso ético e focado em denunciar os poderosos. Multiplataforma era a gare da Central do Brasil. Uma tarde, molhada de chuva, a repórter meteu-se embaixo da mesa e trocou a camisa encharcada pela camiseta seca com que faria ginástica ao fim do expediente.

Eu não sei se Gazzaneo viu esse mesmo balaio de cenas que vez por outra me assombra as retinas cansadas. Nem imagino quantas folhas de carbono ele usava para tirar cópias dos textos, se era bom no título de 3 de 13, se a máquina dele tinha a letra “o” furada ou se mandava a estagiária pegar a calandra na oficina. Via-o de longe, sei-lhe da fama das boas sacadas editoriais. Cruzamos esses mesmos salões enfumaçados quando eu começava a gastar sola de sapato atrás da notícia, a passar a madrugada na porta do embaixador sequestrado, a fazer a ronda das delegacias e outros clichês da profissão. Eu era o foca, velho atrasador de jornais e encarregado do funéreo, escondido lá no cantinho, ao lado do relógio de ponto. Gazzaneo me viu de longe.

Foi sei lá quando, talvez no tempo em que os jornais fechavam à meia-noite, e, se a fumaça dos cigarros não atrapalhasse, daria ainda para sentir o perfume do carrinho de café cruzando a redação, formando rodinhas de blábláblá intermináveis ao redor dele. Um terço dos jornalistas frequentava os Alcoólicos Anônimos, o outro terço mantinha-se filiado ao Partido Comunista e o último falava um sotaque arretado, trocando lembranças de como viviam no Pará, Ceará, Paraíba, Bahia, e outros estados terminados em “a” aberto. Os nordestinos davam show nas pretinhas, todos com um romance guardado na gaveta da redação.

Estou falando do “Diário de Notícias”, GLOBO, “Correio da Manhã”, da “Última Hora” e de “O Jornal”. No “Jornal do Brasil”, havia um ascensorista chamado Vovô. Quando ele passava pelo sexto andar, o da redação, a porta abria e ele anunciava onde o passageiro estava: “Parque de diversões”. O homem era neto de escravos, tinha trabalhado com enxada na roça, não acreditava que aquela gente ganhava a vida escolhendo fotos, entrevistando artista de cinema e acompanhando o escrete pela Europa.

Isso tudo foi talvez antes de anteontem, há tanto tempo que eu já nem sei mais quando e nem se vem ao caso apurar. Aconteceu em redações hoje arquivadas em museus do jornalismo, mas o Gazzaneo com certeza estava lá, cortando matéria pelo pé, e conheceu as figuras típicas do negócio. Havia o editorialista que, pautado para um texto sobre a Semana Santa, perguntava se contra ou a favor. Tempos da estagiária de calcanhar sujo e do grande repórter de polícia. Na cobertura da morte do bandido Cara de Cavalo, a polícia deu 52 tiros no meliante, e obrigou, ou sugeriu, ou eles tomaram a iniciativa, todos os repórteres que viram a cena a também darem seus tecos na barriga do indigitado. Hoje, seria um escândalo, naqueles tempos morreu em conversa no Lamas.

Foi definitivamente em outro século, muito antes de os jornais publicarem seus códigos de ética. O politicamente correto não existia, as mulheres eram flores raríssimas. Com certeza o Gazzaneo estava lá quando o cara do horóscopo faltou e o editor de polícia foi convocado para aconselhar os nascidos em Escorpião: “Não fique de costas para a porta”, escreveu, fiel à índole sanguinária de sua editoria.

Eu também andei por essas redações, no tempo em que se morria em decúbito dorsal, depois se dava entrada no nosocômio, e a vida dos que sobreviviam seguia em duas edições, vespertina e matutina. Às vezes, como se fosse uma metáfora da existência, saía tudo empastelado.

Eu estava lá, e, aqui, escrevendo essas mal traçadas em meio ao silêncio das redações modernas, ainda escuto a barulheira das máquinas Olivetti, dos telefones e dos repórteres que, para serem ouvidos acima de todo aquela balbúrdia, gritam quando, onde, quem, como e por quê?. Foi nos tempos do samba, quando se comprava o jornal da manhã para saber das novidades.

O fechamento do Caderno B era regado por goles de uísque servido pelo contrabandista, um sujeito sempre circulando cheio de garrafas pela redação. Qualquer um entrava, batia nas costas do repórter — uma vez foi nas minhas — e dizia “vim aqui fazer uma denúncia contra o meu vizinho, mas quero que saia na primeira página”.

Ganhava-se pouco, e o Gazzaneo deve estar de acordo, mas era bem mais divertido.