Por Inácio Araújo
Lá vou eu me meter onde não devo, já que os mais respeitáveis, os mais lúcidos dos analistas do esporte acreditam que o olho eletrônico vai resolver o problema das arbitragens no futebol. Não é sem motivos. O Juca Kfouri, por exemplo, diz que existe um massacre semanal dos juízes, por conta da repetição pela TV. Faz sentido.
Se eu entendi corretamente, só esta semana dois juízes foram suspensos por causa de erros (supostos ou verdadeiros) de arbitragem. A idéia ganhou força, primeiro, com o gol do Palmeiras anulado pelo juiz Simon no último domingo.
Se não estou enganado, esse mesmo juiz (se não foi ele, não altera a questão) foi motivo de chacotas, ofensas, tudo o que se quiser, por não ter dado o chamado “pênalti claro” para o Flamengo contra já não me lembro quem (ou era contra o Flamengo? Enfim…) há alguns meses.
Isso até que aparecesse uma imagem de outro ângulo, insuspeito, a provar que, no lance do “pênalti claro” o suposto agressor não havia nem mesmo tocado na suposta vítima.
E aí, evidente, o que era claro se tornou obscuro e todo mundo enfiou a viola no saco. Na minha amadorística opinião, o lance com o Palmeiras, no domingo, foi mero perigo de gol. Mas já ouvi falar de um outro e inédito ângulo a demonstrar que o atacante fez falta sim e etc. e tal.
Ou seja, voltamos à obscuridade. No primeiro lance, o do Flamengo, se o cara fosse consultar o video teria dado um pênalti absurdo. No segundo, o do Palmeiras, em nenhum momento o juiz disse que gostaria de ver o lance melhor, que talvez tenha visto coisa demais ou de menos. Nada disso. Disse que o atacante segurou o beque. Portanto, não recorreria a videoteipe algum.
No mais recente, no meio da semana, outro jogo do Palmeiras, a questão agora é o som: um apito soa e paralisa os jogadores do Sport, enquanto o palmeirense faz o gol. A partir daí, cada um puxa a brasa para a sua sardinha, pois não se sabe nem mesmo se o apito veio do juiz ou de alguém na arquibancada.
O meu ponto é: a imagem é uma ilusão. Não é coisa em que se deva acreditar. É isso que nos ensinaram mais ou menos todos os grandes diretores de cinema, sem contar os filmes (e livros) de vampiros. Certas coisas são pura imagem. Talvez, no dia em que a TV seja em 3D a imagem possa ser mais confiável. Por enquanto, está visto que seu uso produzirá mais equívoco e ambiguidade do que outra coisa.
(Não falo nem do melê que vai ser quando uma grande torcida pedir pênalti, por exemplo, e o juiz mandar o jogo em frente sem olhar no VT).
Como efeito suplementar, e já fora do âmbito do juiz ladrão, me parece que o uso imoderado da câmera lenta provoca juízos igualmente equívocos. Às vezes me pilho pensando em como tal goleiro não pegou aquela bola que passou ao seu lado. Ora, percebo depois, foi chutada com força enorme e a pequena distância. O efeito analítico da câmera lenta se torna, na maior parte dos casos, perverso. Do mesmo modo, quando uma falta passa em câmera lenta, com muita frequência parece uma agressão violentíssima. Não me digam que isso só afeta a minha percepção.
É claro que em certos casos, a eletrônica pode ajudar. Algo semelhante à arbitragem de tênis, onde se vê direitinho onde foi a bola, é concebível. Dizem que no futebol americano os juízes também costumam consultar as câmeras, mas não entendo nada desse (e, atenção, trata-se de um jogo truncado por natureza).
O uso no basquete é raro. No basquete americano, até onde sei, só se pode usar a imagem para conferir tempo (se uma jogada aconteceu dentro do tempo regulamentar e tal). Faz sentido, porque aí o olhar se engana com mais facilidade, neste caso.
Há uma coisa boa no regulamento da NBA: quem, jogador, técnico, cartola que reclamar dos juízes leva multa e/ou suspensão. Se querem realmente acabar com essas discussões histéricas, me parece muito mais útil proibir as pessoas que mais as incitam (cartolas, técnicos e jogadores) de comentar os juízes.
Bem, isso parece que não tem nada a ver com cinema, mas tem tudo. O fundo da imagem é escuro como esse blecaute de outro dia. Ela só consegue mostrar que não existe imagem verdadeira, final, única. A imagem só mostra o que ela quer tornar visível.
Não é questão de má-fé, é da sua natureza.
Como uma falsa amiga, seu uso só criará casos de injustiça flagrante, quando, por exemplo, mostrar um jogador agredindo um outro. E nos milhares de casos sem câmera, azar.
Bem, devo dizer o seguinte. Pensei nessas coisas quando via “A Imperatriz Yang Kwei Fei”, do Mizoguchi, e veio o blecaute. A primeira sensação é de cegueira. Pouco depois, é de inconformidade: como posso ter a vida interrompida desse jeito? Uma sensação de desamparo. Em seguida, porém, me senti numa pausa: nós vivemos abarrotados de imagens de toda natureza, o tempo todo. Acho que até quando dormimos, há as imagens do sono. Elas não param. Então, essa interrupção me privou de um belo filme, mas me deu o silêncio, um instante de obscuridade, de não imagem: um pouco como Kiarostami em “Shirin”. Um pouco como Ozu, em que o personagem faz o gesto de nos mostrar um bairro inteiro, mas a câmera não mostra nada. Quanto mais imagens, mais sombras, maior a ilusão de ver.
Nos comentários que fazem os leitores nos blogs esportivos, parece que já não existe mais o jogo, só o juiz. Eles só acreditam na má-fé. O juiz só apita assim para roubar alguém. O cronista só diz tal coisa porque é corinthiano ou palmeirense, ou bairrista, ou interessado. A arbitragem com imagem não vai mudar esse tipo de coisa. Só vai acentuar.
Tudo continua a ser uma questão de crença. A imagem só torna as pessoas mais crispadas.
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