Shakespeare invade o automobilismo

Por Maurício Stycer

De todos os esportes, o automobilismo talvez seja aquele em que é maior a necessidade de controlar a paixão e demonstrar frieza. Um piloto que se deixa levar pela emoção não coloca apenas uma corrida em jogo, mas a própria vida – o que o diferencia tanto de um tenista quanto de um jogador de futebol, por exemplo, cuja perda de controle pode ocasionar, no máximo, uma derrota.

Hans Ulrich Gumbrecht, em “Elogio da Beleza Atlética” (Companhia das Letras, 2007), observa que os grandes pilotos se diferenciam dos demais por dois aspectos. O primeiro é a capacidade de compreenderem a máquina que os leva pelas pistas. Esse talento é fruto de conhecimento mecânico e intuição. Em uma palavra, a capacidade especial de fazer o “acerto” do carro.

O outro indicador fundamental de desempenho que o automobilismo exige dos pilotos, lembra Gumbrecht, é a frieza. “Eles precisam ser capazes de ficar perdidos, por horas, na intensidade da concentração. Precisam manter a tranqüilidade apesar da constante ameaça de morte – uma tensão que só se dissipa quando cruzam a linha de chegada”.

Com Gumbrecht em mente, é possível entender um detalhe tão fascinante quanto mórbido da saga envolvendo o piloto Nelsinho Piquet, seu pai, o tricampeão mundial Nelson Piquet, e o empresário Flavio Briatore. Em qual outro esporte um atleta teria a frieza de colocar em risco a própria vida para obter benefícios? Muitos atletas já se acidentaram e mesmo morreram praticando esportes, mas não conheço nenhum caso em que um esportista, friamente, provocou uma situação que colocava a sua integridade física em risco.

O que Gumbrecht não analisa em seu livro é a dimensão shakespeariana deste episódio. A julgar pelo que o Grande Prêmio relatou ontem e hoje sobre o caso, estamos diante de uma história não apenas de dolo, mas de vingança. Diferentemente de Hamlet, que quer vingar a morte do pai, aqui vemos um pai em busca da vingança que fará justiça ao filho, supostamente lesado depois de colocar a própria vida em risco em nome de um empresário – aparentemente – ingrato.

Trata-se, enfim, de uma história que nem o mais apaixonado fã do automobilismo poderia um dia ter pensado. Mas Shakespeare imaginou.

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